quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Considerações acerca do ódio.

"Esse meu ódio é o veneno que eu tomo querendo que o outro morra".

(Marjori Stock)


Na definição dos dicionários mais comuns, ódio é o rancor profundo que se sente por alguém ou algo, assim como o desejo de evitar, limitar, destruir o seu objetivo; aversão intensa motivada por raiva ou injúria sofrida; ojeriza; repugnância. O ódio, de acordo com a definição do judaísmo, não passa de um grande mal-entendido, igualado a coisas que não é, e sendo classificado como um dos males mais tenebrosos, quando, na verdade, não passa de uma emoção humana, tal qual o amor.

Classificar o ódio como mau sentimento é, no mínimo, contraditório: não se pode odiar, por exemplo, os bandidos que arrastaram até a morte o garotinho por várias ruas do Rio? Não se pode odiar o racismo, o preconceito, a barbárie? Não se pode odiar o ódio? Há ódio bom e ódio ruim? A questão é demasiadamente complexa!

Na arte, o ódio é representado de várias maneiras. Eis alguns exemplos:

- Pintura

“O ódio”, do pintor espanhol José Luis Fuentetaja, 1971.

- Teatro

Uma das mais famosas peças de teatro que retratam o ódio se chama “Medéia” (431 a.C.), do dramaturgo Eurípedes, que deu (mais do que nenhum outro) novos elementos à tragédia grega. A peça apresenta o perfil psicológico de uma mulher carregada de amor e ódio a um só tempo; estrangeira perseguida e esposa repudiada; tomada de uma fúria terrível, mata os filhos que teve com o marido para se vingar dele e se automortificar. Consiste numa das mais importantes personagens femininas da dramaturgia mundial. A seguir, excertos de Medéia:

“(...) Vim pedir ódio. Vim pedir a coragem da vingança. Vingança é o único alento do oprimido, sua única esperança! (...) Gosto de sangue na minha boca. O homem pai dos meus filhos, que ajudei com a minha juventude, vai se casar com outra. Ele viajou seis meses, voltou, não deu sinal, foi na boca anônima que eu ouvi que ele ia se casar – pelo meu homem confiei nesta vida tão sobressaltada e agora eis-me abandonada, com dois filhos, sem dinheiro, sem parente para me receber e chorar minha raiva mais do que eu. (...) Eu já estou morta. Mas a morte só não basta. Eu quero o vento da desgraça”. (Med.,p.135)

- Literatura

Sobre o ódio, o escritor Ferreira Gullar fez um poema em julho de 2003, especialmente para a Exposição de Arte: “Israel e Palestina – Dois Estados para Dois Povos”. Veja trecho:

(...)
O mais baixo dos sentimentos humanos é o ódio
Não cria nada.
Não traz felicidade, mas desgraça.

Matar o irmão do outro
Não faz reviver o teu irmão

Apenas gera mais ódio e fúria
E mais luto em tua própria casa.

A inteligência existe para tornar o homem melhor
Para fazê-lo compreensivo e cordato
Para que se entenda com os outros homens.

Com a inteligência distinguimos o justo do injusto
A inteligência nos ensina
Que todos os homens têm direito a seu chão,
À sua pátria
E à liberdade de governar a sua vida

Nenhuma força é capaz de apagar a injustiça
E domar o injustiçado
O caminho da paz é o entendimento
Jamais a imposição e o terror.

Quem de fato desejaria um futuro de desgraças e morticínio?
Só a besta-fera.

O homem sonha com um futuro de paz e felicidade
Que não nasce da violência
Mas do diálogo.

Todos os que se odeiam e se matam
Alegam razões para isto.
E ninguém os convencerá do contrário.
Só chegarão a um acordo
Quando se sentarem à mesa e disserem:

“Esqueçamos as ofensas passadas”.


- A poetisa portuguesa Florbela Espanca, apesar de sua vida repleta de decepções e dissabores, preferiu a resignação ao ódio:

Ódio por ele? Não... Se o amei tanto
Se tanto bem lhe quis no meu passado
Se o encontrei depois de ter sonhado
Se à vida assim roubei todo o encanto

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado
Olhar de monja, trágico, gelado
Como um soturno e enorme Campo Santo

Ah! Nunca mais amá-lo é já bastante!
Quero senti-lo d’outra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por ele? Não... Não vale à pena...


- Música

Na música brasileira, são inúmeros os exemplos. Dentre os campeões de compositores que exprimem ódio em suas canções, figuram Renato Russo, Cazuza e Ângela Rô Rô.

- Renato Russo declarava ódio aos seus desafetos, às injustiças sociais e à estupidez humana. Era um ódio ressentido, muitas vezes motivado por um coração partido e desesperançado em relação ao futuro de si mesmo e do mundo. Veja trechos de algumas letras:

(...)
Veja bem quem sou
Com teu amor eu quero que sintas dor
Eu quero ver-te em sangue e ser o teu credor
Veja bem quem sou

Trouxe flores mortas pra ti
Quero rasgar-te e ver o sangue manchar
Toda pureza que vem do teu olhar
Eu não sei mais sentir.

(A tempestade)


(...) Sai de mim
Que eu não quero mais saber de você
Esse ‘eu te quero’ já não me convence mais
E agora já nem me incomoda

Sai de mim
Não gosto de ser rejeitado
E agora não tem volta

Eu pego o bonde andando
Você pegou o bonde errado
Sua curiosidade é má
E a ignorância é vizinha da maldade
E só porque eu tenho, não pense que é de mim
Que você vai ter e conseguir o que não tem
Só estou aberto a quem sempre foi do bem
E agora estou fechado pra você.

(Do espírito)

(...) Volta pro esgoto, baby!
Vê se alguém te quer.
O que ficou é esse modelito
Da estação passada

Extorsão e drogas demais
Todos já sabem o que você faz
Teu perfume barato
Teus truques banais
Você acabou ficando pra trás.

(As flores do mal)


(...) Eu sou, eu sou
A pátria que lhe esqueceu
O carrasco que lhe torturou
O general que lhe arrancou os olhos
O sangue inocente de todos os desaparecidos
O choque elétrico e os gritos:
- Parem, por favor! Isso dói.


Eu sou a lembrança do terror
De uma revolução de merda
De generais e de um exército de merda.
Não, nunca poderemos esquecer
Nem devemos perdoar
Eu não anistiei ninguém...

(La Maison Dieu)


Tudo o que você faz
Um dia volta pra você
Se você fizer um mal
Um mal mais tarde
Você vai ter que viver

Não me entregue o seu ódio
Sua crise existencial
Preliminares não me atingem
O que interessa é o final
E não me venha com problemas
Sinta sozinho o seu mal

Eu tenho cicatrizes
Mas eu não me importo, não
Melhor do que a sua ferida aberta
E o sangue ruim do seu coração

Os aborígenes na Austrália
Com um boomerang vão caçar
O boomerang vai e volta
E só fica quando consegue acertar
E eu sou como um boomerang
Quando eu acerto é pra matar
(...)
Como um boomerang tudo vai voltar
E a ferida que você me fez
É você que vai sangrar.
Eu tenho cicatrizes
Mas eu não me importo, não
Melhor do que a sua ferida aberta
E o sangue ruim do seu coração...

(Boomerang blues)

- Cazuza também fazia uso da acidez das palavras e da ironia para expressar seu ódio aos fracos, medíocres, hipócritas e caretas:

Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal-plantadas
Que já nascem com cara de abortadas
Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não tem

Pra quem vê a luz
E não ilumina suas mini-certezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia.
Pra quem não sabe amar
Fica esperando alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Dê-lhes grandeza e um pouco de coragem

Quero cantar só pras pessoas fracas
Que estão no mundo e perderam a viagem
Quero cantar os blues
Com um pastor e um bumbo na praça
Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade...
(Blues da piedade)


- Angela Rô Rô, famosa por seus blues e jazz de emoções confusas, bem como por seu temperamento bombástico, foi manchete, no início dos anos 80, em vários jornais que noticiaram sua agressão à cantora e então namorada Zizi Possi. O notável rancor profundo à ex-amante é destilado nas suas letras confessionais. Nota-se no conteúdo o uso de mecanismos de defesa no intuito de proteger seu Ego da dor e "ficar por cima" na situação:


Tola foi você ao me abandonar
Desprezando tanto amor que eu tinha a dar
Agora, veja bem, o mal é vai e vem
É só esperar...

(Tola foi você)

Quisera eu ser traída pelo corpo
Um pecado quase morto
Do que ser traída assim
Covardemente, pela mente sedutora
Pois do crime foste autora
E a lei caiu em mim

Não acredite que você lucre com isso
Pois promoção eu faço também dar sumiço
E eu nem preciso rogar praga de madrinha
Pra saber que brevemente estarás mal e sozinha

Sua cabeça sempre foi fraca e abusada
E não estava preparada pro amor que eu dediquei
Não me arrependo, vou jogar bola pra frente
Pois atrás sempre vem gente
E com amor nunca brinquei.
(Fraca e abusada)


Enfim, desde que mundo é mundo, o ódio permeia os corações com a mesma facilidade que seu antagônico, o amor. Ódio e amor assemelham-se justamente por serem emoções extremas, às quais o ser humano é tão vulnerável. E não há razão que justifique a existência de um ou outro: eles simplesmente existem, às vezes adormecidos, prestes a despertar ao toque mais sutil. Embora haja discordância de opiniões, é possível que ódio e amor caminhem juntos, simultaneamente, pois a mente humana é repleta de idiossincrasias, o que contraria a crença de que “quem carrega amor no coração não pode sentir ódio”, até porque quase sempre o ódio não é gratuito, e sim derivado de um amor não correspondido ou decepção sofrida.


“O ódio, que julgas ser a antítese do Amor, não é senão o próprio Amor que adoeceu gravemente”. (Chico Xavier)


4 comentários:

Anônimo disse...

Gostei especialmente da parte da poesia da Florbela Espanca. A-do-ro esta mulher! E o modo como ela, ao mesmo tempo, se resigna do ódio e ainda despreza, nesse poema aí... é algo fantástico. Adorei.
Na verdade, tive que escolher uma parte do seu texto para comentar, porque o post é um tanto grande e todo interessantíssimo... Gostei bastante, de tudo, de todas as considerações acerca do ódio... Pessoais, as da arte, literárias e afins. Falou de arte, literatura, e ainda, música... Tá falando comigo (risos)!
Ficou muito boa a compilação toda.
Também gostei da escolha do "Blues da piedade", de Cazuza. E dos trechos do Renato Russo. (Ah, como queria esses caras vivos!)

Cátia Veloso disse...

Oi querido!
Cá estou eu de novo parabenizando-o por mais esta coisa maravilhosa e tão gostosa de ler. Nunca me imaginei gostando tanto de ler algo a respeito deste sentimento que causa tanto pavor nas pessoas. É,porque amar todos dizem que amam mas se for pra declarar ódio a alguém ou alguma coisa, há uma tendência a eximir-se de quisquer comentário, como se fosse uma maldição até admitir tal sentimento; como se corresse o risco de ser amaldiçoado ou banido desse mundo (tão cheio de amor).
Não conhecia o ódio da Medéia, por exemplo, mas acho que foi a descrição mais fortemente expressada e mais crua que já li a respeito do ódio (esse sentimento adverso) mas não tão distante de nossa capacidade.
Não sei se fui coerente mas falei exatamente o que senti.
Mais uma vez, tiro o chapéu pra você, Freddy.
Beijos

Elilson disse...

Fantástico texto" fascinante, a começar pela epígrafe utilizada!
E não poderia terminar melhor com essa incrível citação do Chico!

Anônimo disse...

Freddy, eu tinha passado despercebida por essa sua postagem, e só hoje vi o quanto o texto é delicioso de se ler. Concordo com os outros internautas, só você mesmo para escrever de modo a prender atenção, mesmo falandonde um sentimento pesado como o ódio!

Beijos, querido!