quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O peru de Natal

Mário de Andrade


O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.


Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.


Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":


— Bom, no Natal, quero comer peru.


Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.


— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...


— Meu filho, não fale assim...


— Pois falo, pronto!


E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.


Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.


Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:


— É louco mesmo!...


Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.


— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!


Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.


— Eu que sirvo!


"É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:


— Se lembre de seus manos, Juca!


Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.


— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!


Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.


Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.


Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.


— Só falta seu pai...


Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:


— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.


E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.


Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.


Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.


Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

O texto acima foi extraído do livro "Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza, Rio de Janeiro, 1964, pág. 23


Mário de Andrade (1893-1945), nasceu em São Paulo, mostrando desde cedo inclinação pela música e literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar em São Paulo, de parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, que rasgou novas perspectivas para a cultura brasileira. Sua obra, essencialmente brasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. "Macunaíma", baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.

sábado, 1 de dezembro de 2007

No baticum da música eletrônica


A nomenclatura música eletrônica se refere a tudo que é utilizado binariamente para produzir música. Poucos se dão conta de que, quando falamos em música eletrônica, referimo-nos ao revestimento que a tecnologia permitiu à produção moderna. Quem conhece Céu, Cibelle, Bebel Giberto, Roberta Sá, Marina Lima ou Kátia B sabe que por trás do samba existe uma atmosfera concretizada a partir dos recursos da E-music. Já no baticum da música eletrônica dançante talvez haja mais com o que se preocupar do que botar o esqueleto para mexer. Dançante restringe o termo ao som que leva à dança em festas, mais precisamente, neste caso, às raves e movimentos correlatos: cena que pode ser subdividida em incontáveis gêneros. Da era disco ao final dos anos 1980, quando a música eletrônica dançante ganhou força com a invenção das raves, na Inglaterra, a mídia rejeitou o produto, depois o tombou para gerar o lucro e hoje volta condenar um modo de vida que, no princípio, propunha-se a reunir pessoas que pensavam em promover a elevação do espírito através da música, assim como se fazia nas décadas de 1960 e 1970 sob a ideologia do "paz e amor".


No entanto, há uma inversão de valores erguida pela burguesia alienada de hoje: a rave, que era reflexo da contestação e ambiente para o ouvinte entrar em estado de transe, utilizando como base a transformação do estado do corpo através de batidas seqüenciais, transformou-se em caso de polícia e saúde pública. Obviamente, o estado de transe dos anos 70, ou de hoje, sempre está associado ao uso de elementos adicionais à música, como drogas. E antes que a hipocrisia ataque, a diferença parece estar na consciência do usuário. A década de 70 não vivi e, portanto, não sei que nível de responsabilidade havia pelos usuários de aditivos. Nos anos 00, a música eletrônica dançante deixou de ser um ideal de revolução para se tornar tripé da experiência irresponsável do ouvinte, e a música deixou de ser o aspecto principal. Por quê?


Freqüentar a cena eletrônica deveria ser, em essência, tirar proveito da cultura underground que, por natureza, valoriza a qualidade em detrimento do apelo comercial. Mas, enquanto produto, empresas multinacionais passaram a apoiar raves que tem nas pick-ups Dj's estrelas do underground: paradoxo que virou moda e, como moda pós-moderna, criou um estilo de vida onde o que vale é desfrutar do prestígio.


O prestígio descabido levou a polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, a prender nove pessoas no início de novembro, todos de classe média, que traficavam ecstasy para freqüentadores de raves. O ecstasy é a pílula mágica da vida para quem anda pela cena. É uma droga de forte apelo e efeito sedutor entre jovens e adolescentes porque dá pique e "elevação de espírito" nas festas que podem durar mais de um dia. Mas o ecstasy é uma droga sintética que pode causar danos aos usuários a longo prazo, como neurodegeneração e perdas de memória, além de desencadear transtornos psíquicos como a depressão e a síndrome do pânico. Causa também alteração dos sentidos - principalmente tato e audição - e pode ser fatal. O consumo da droga, mesmo que seja em pequena quantidade ou eventualmente, causa aceleração dos batimentos cardíacos, superaquecimento corporal e também um desequilíbrio na concentração de sais minerais do organismo. Comercializada em forma de comprimido, cápsula ou pó, a bala (como é chamada a pílula) faz o jovem exceder os limites e "fritar", ou ficar "muito louco", traduzindo a gíria. E o ecstasy é caro. Uma balinha não sai por menos de R$ 50,00. Talvez isso explique a predileção da classe média pela droga.


Por outro lado, drogas ilícitas em geral nunca estiveram tão baratas. Estudo do Centro Europeu de Monitoramento de Drogas (EMCDDA) mostra que, em cinco anos, a heroína sofreu redução de 45% e a cocaína, de 22%. Já a maconha, em Portugal, é vendida a 2,3 euros o grama e a 12 euros na Noruega.


Em Mossoró-RN, a cinquentinha da maconha, como é conhecida a barra de 50g, está entre 70 e 150 reais. Apesar do valor, ainda é a droga mais popular e pano de fundo para constatar, obviamente, a ausência de um movimento da música eletrônica na cidade. Este ano, a Delegacia de Narcóticos apreendeu 5.190 pedras de crack e pouco mais de 3Kg de maconha na cidade até meados de novembro. No mesmo período, a Polícia Federal apreendeu pouco mais de 56Kg de maconha e por volta de 6Kg de cocaína. Portanto, o ecstasy não passou pelas mãos da polícia em Mossoró. A idéia não é condenar a cena eletrônica, que mal existe. Aliás, quanto mais música, melhor. Para além de associar a música eletrônica à droga, fujo da repressão e do sensacionalismo da mídia e, assim, desejo que a cena vingue de forma consciente, porque a chegada será inevitável. Antes é preciso que se deixe de circular pelos bastidores das festas - quando raramente acontecem - os burburinhos de que o movimento é GLS. E, se vingar, a classe média (ou seja lá quem venham a ser os freqüentadores) deve reparar que, antes do abuso no uso das drogas, há música de qualidade e artistas interessados no respeito.

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Entrevista: Maurício Cézar.

O músico Maurício Correia Cézar Neto tem 27 anos de idade, toca vários instrumentos e possui um vistoso currículo. Já acompanhou várias personalidades importantes da cena musical pernambucana, como Antônio Nóbrega e Nena Queiroga. Além disso, atua como professor de música nos ambientes SESC e coordena um grupo de chorinho para crianças e adolescentes. Nesta grata entrevista, concedida por e-mail, ele fala sobre sua carreira, formação e referências.

Freddy Simões - Com que idade você descobriu sua vocação para música? Há outros músicos na sua família?
Maurício Cézar - Aos sete anos de idade, lembro-me de ter comprado uma flauta doce com o dinheiro da merenda que havia levado para a escola e isso certamente contribuiu para que eu tomasse gosto pela música. Antes disso, guardo na memória algumas músicas que me chamaram atenção e as tenho como madrinhas da minha carreira musical. São elas: Lilás (Djavan), Construção (Chico Buarque) e One Day In Your Life (Michael Jackson). Meu pai foi clarinetista amador e não tenho tantas lembranças dele como músico, também não tive o prazer de tocar ao seu lado, já que ele faleceu num acidente de carro em 1986.

FS - Quando começou a estudar música? Qual a sua formação?
MC - Não me lembro com exatidão se em 97 ou 98, mas meu primeiro contato concreto com a música foi no colégio estadual Joaquim Távora, em Niterói-RJ. Estudei teoria e vários instrumentos que estavam à disposição da banda da escola, entre eles, escaleta, trompete e percussão. Após alguns anos, me mudei para Recife e continuei em bandas de escolas, agora, me dedicando ao clarinete que havia herdado do meu pai. Aos treze anos, comecei a participar de uma banda evangélica na qual ainda tocava clarinete. Aos quatorze anos, já ganhava os primeiros cachês com o teclado e de lá para cá não parei mais. Estudei piano popular no conservatório pernambucano de música e com os pianistas Tonny Yucatan e Marco Diniz; no cavaquinho tive Marco César como orientador e esse sim foi, sem dúvidas, a maior referência musical que tive nessa fase. Conclui o curso de graduação em música pela UFPE e estou no final de uma pós-graduação em história das artes e das religiões pela UFRPE.

FS - Você toca piano, cavaquinho, violão e acordeon. Considera-se multi-instrumentista ou seu instrumento é mesmo o piano?
MC- Considero-me um curioso! Porém, procuro tirar proveito dessa curiosidade e sei que boa parte do que aprendi até hoje foi fruto disso. Instrumentista é um termo que procuro dar a pessoas que têm um domínio muito grande de técnicas e repertórios. Seguindo essa visão, não acredito que tenhamos mais de uma dúzia de multi-instrumentistas no Brasil.

FS - No Brasil, há grandes pianistas-compositores-arranjadores como, por exemplo, Gilson Peranzetta, Ivan Lins, Antonio Adolfo e César Camargo Mariano. Com quem você se identifica mais?
MC - Apesar de admirar todos, tenho uma afinidade maior com o trabalho de César Camargo Mariano e o considero um dos maiores arranjadores que o Brasil já teve.

FS - Quais músicos estrangeiros têm influência no seu trabalho?
MC- O pianista Oscar Peterson e o cantor Stevie Wonder são, para mim, referências de técnica e criatividade, porém admiro o trabalho de muitos outros.

FS - Dentre os figurões da MPB (Chico, Caetano, Gil, Elis, Nara, João Bosco etc.), você se diz mesmo fã confesso de Djavan. Acaso poderia mensurar a importância da música dele na sua vida?
MC- Sou sim muito fã de Djavan, mas confesso que atualmente estou cada vez mais apaixonado pelo trabalho de Chico Buarque. Acho um crime que a juventude não tenha acesso a sua obra através das rádios FM’s.

FS - Você compõe?
MC - Sim, componho músicas, mas não consigo colocar letras, essa parte eu deixo para meus parceiros.

FS - O que lhe dá mais satisfação: sua atuação como professor de música nos ambientes SESC ou o trabalho como músico da noite?
MC- Os dois trabalhos têm o seu lado gratificante e, no momento, não conseguiria me afastar deles.

FS - Fale um pouco sobre grupo de chorinho que você coordena.
MC - O projeto foi idealizado pelo presidente do SESC, o prof. Josias Albuquerque, que é um grande admirador do choro e grande incentivador do nosso grupo. Temos pouco mais de um ano, e começamos com crianças do zero! Quer dizer, crianças que nem ao menos sabiam ao certo o que era choro. Hoje, me sinto muito orgulhoso pelo trabalho que temos feito, e agradeço a Deus por ter me escolhido para essa tarefa. Tenho a oportunidade de apresentar “música de verdade” a essas crianças e adolescentes. E já é visível o avanço delas. Já podemos discutir repertório e conversar sobre compositores de uma forma satisfatória e prazerosa.

FS - Quais os grandes nomes do chorinho, em sua opinião?
MC - Vou citar alguns mestres: Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho, Rossini Ferreira, Luperce Miranda(esses dois últimos pernambucanos). Entre seus discípulos estão: Hamilton de Holanda, Marco César, Yamandu Costa, Danilo Brito, etc.

FS - Quais as personalidades com quem você teve mais prazer em tocar ou gravar em estúdio?
MC - Antônio Nóbrega, certamente foi o mais divertido! Além disso, ele passa um clima muito bom no estúdio, e olhe que passamos por uma prova de fogo, já que o tom de uma das músicas foi alterado na hora da gravação e toda a digitação no instrumento teve de ser alterada.

FS - Qual a sua opinião acerca dos artistas que têm feito a novíssima MPB, tais como Jorge Vercilo, Zeca Baleiro, Ana Carolina, Maria Rita, Vander Lee, Vanessa da Mata, Roberta Sá, entre outros? Algum em especial lhe chama a atenção?
MC- Sei que minha resposta será polêmica, mas serei bem sincero. Todos acima têm seus méritos, principalmente por conta desses problemas com a pirataria. Admiro o trabalho de Jorge Vercilo e de Zeca Baleiro - esses dois pra mim têm um maior destaque no presente momento. Vivemos uma constante queda na qualidade técnica dos cantores e, apesar da evolução dos equipamentos de áudio, como retorno auricular, podemos perceber que a desafinação é constante nos shows de alguns desses artistas. Em alguns casos não sabemos se o artista está cantando ou gritando, as melodias não são tão marcantes como as do passado, vivemos uma queda constante na construção melódica, e a impressão que eu tenho é que agora só o ritmo interessa. Enfim, de trinta anos pra cá, a qualidade musica caiu. Tenho lá minhas dúvidas se a solução seria regravar músicas antigas, pois ouvi um dia desses a gravação de Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque), na voz de Ana Carolina, e tive uma decepção inigualável.

FS - No final do ano passado, a cantora Ivete Sangalo gravou um DVD no Maracanã lotado – em superprodução comparada somente às da popstar Madonna – e foi alçada definitivamente ao patamar de estrela maior da música brasileira e recordista de vendas no país, mesmo com a pirataria. Você gosta do trabalho dela?
MC - Não! Mas ela é muito simpática!

FS - E de Pernambuco, qual o artista que você mais admira?
MC - Silvério Pessoa, Alceu Valença e Antonio Nóbrega.

FS - A qualidade e criatividade da música popular brasileira entrou em declínio a partir dos anos 90 ou essa é uma opinião de críticos nostalgistas e conservadores que acreditam não existir nada melhor após a geração de Chico e Caetano?
MC - Concordo com os críticos nostalgistas e levanto uma questão: diga-me três músicas desses últimos anos que serão consideradas hinos, como Carinhoso, O bêbado e a equilibrista ou Wave? Diga-me três cantores que terão seus nomes lembrados, como Elis Regina, Nelson Gonçalves e Tim Maia? Diga-me três músicas que exprimam tanto sentimento quanto Atrás da porta, Suburbano Coração ou ainda Trocando em miúdos? Será que tem?

FS - Música é arte e, portanto, expressão da individualidade de seu criador. Para você, a música é forma de libertação, válvula de escape das mazelas emocionais ou profissão como outra qualquer?
MC - As três.

FS - Muitas vezes, quando se diz a alguém, "sou músico", é possível ouvir a pergunta "sim, mas você não trabalha?". Por quê, num país de musicalidade tão rica quanto o Brasil, ainda há quem enxergue a música de maneira tão preconceituosa e ignorante? Por que ainda é tão difícil se viver de música neste país e, principalmente, no Nordeste?
MC - Certamente o maior culpado disso tudo é o próprio músico que nunca se deu muito respeito. Uma prova disso é a Ordem dos Músicos, que deveria funcionar como um órgão fiscalizador assim como o Detran, mas, como sabemos, é comum termos que nos sentar em um barzinho para escutar um cara que não tem condições de cantar nem no banheiro. Então, eu lanço outra pergunta: eu poderia consultar pacientes ou levantar edifícios ou ainda julgar inocente ou culpado um bandido? A resposta é lógica, mas por que qualquer um pode se dizer músico? Cadê a fiscalização?

FS - Quais os seus projetos futuros? Casamento e filhos fazem parte dos seus planos?
MC - Estou amadurecendo projetos na área instrumental e pretendo iniciá-los no começo de 2008. Estarei me casando em dezembro e estou bastante feliz por isso. Tenho a mulher que pedi a Deus e, se tudo der certo no lado profissional, os filhos virão em breve.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Raimundo Fagner x Caetano Veloso: histórica batalha de egos na música popular brasileira!

Eles marcaram para sempre a música popular brasileira - cada qual com um estilo peculiar - e conquistaram uma legião de admiradores no decorrer de suas longevas carreiras. O primeiro, Raimundo Fagner Cândido Lopes, é cearense de Orós. O segundo, Caetano Emanuel Vianna Teles Veloso, baiano de Santo Amaro da Purificação. Ambos poderiam ter compartilhado o sucesso e se tornado amigos e parceiros musicais. No entanto, tornaram-se protagonistas de uma lendária briga, iniciada ainda nos anos 70 e que perdura até os dias atuais. Segundo Fagner, a briga iniciou-se no dia em que Caetano o chamou a sua casa, juntamente com outros convidados, e se recusou a cantar, alegando cansaço. Fagner, em início de carreira, tomou posse do violão, fez um verdadeiro show e foi aplaudido sucessivas vezes pelos convidados. Caetano teve um acesso de ciúmes e fechou a cara. A situação piorou ainda mais quando, tempos depois, Caetano virou as costas a Fagner quando este conversava com Nara Leão, colocando-se entre os dois. Fagner jamais colocou os pés novamente na casa do baiano, que tachou publicamente o cearense de mau compositor e mau caráter, e só se refere a ele como "titica de galinha".


Fagner acredita que exista algo mais nessa briga do que a simples explosão de duas estrelas de temperamento forte. Ele acha que, na verdade, o que há são maneiras diferentes de ver a música. "A tropicália é uma ditadura cultural. Morreu há muitos anos. Era um som americano, cheio de reggae. Não foi fácil sobreviver à barreira cultural que eles armaram, que é pior do que a censura. (...) Caetano não é o malandro que pensa que acredita ser: é um ingênuo chegando às raias de otário. Só é esperto na música dele".

Em outubro de 2005, quando da ocasião de uma entrevista à Revista Veja, Fagner falou sobre outra briga que teve com Caetano: "(...) eu morava no Rio e era começo dos anos 80. Estávamos eu, Roberto Carlos e ele preparando uma canção para o 'Nordeste já'. Foi uma mobilização de artistas para angariar fundos para o Nordeste, que havia passado por uma seca enorme. O Roberto, com aquele jeito apaziguador, começou a falar como era legal o fato de eu e Caetano estarmos juntos, depois de brigarmos tanto. Daí, Caetano foi se lembrando das brigas e se zangando. Eu sabia que ele estava com fome e fui à cozinha fazer alguma coisa para ele comer. Mas na minha geladeira só tinha ovo. Fiz o ovo e vinha vindo com ele para dar ao Caetano, mas ele continuou falando, falando, querendo confusão. Bom, terminei entrando no pau e jogando o ovo de Caetano no chão. Ele sabe que, comigo, é no tapa". Nessa mesma entrevista à Revista Veja, Raimundo Fagner complementa: "(...) tem uma história que diz que baiano não 'nasce', baiano 'estréia'. E Caetano tem um problema de ego: quer sempre aparecer. Quando não tem assunto, vai à mídia e diz que é melhor que o Chico Buarque e o Milton Nascimento juntos".

Em setembro de 2006, Fagner falou ao programa Fantástico, da Rede Globo, como resposta a Caetano, o qual, três semanas antes, havia tachado o cearense de "besta" no mesmo programa: "eu aprendi a rebeldia com ele. Quem inventou a rebeldia no Brasil? Caetano Veloso. As duas coisas de que mais Caetano gosta são: ser elogiado pelo New York Times - que é muito mais importante do que uma crítica no Brasil, que ele menospreza - e esperar eu falar mal dele. São as duas coisas de que mais Caetano gosta! Agora, como ele fala tanto na terra dele, Santo Amaro da Purificação, como eu falo de Orós, ele podia dar um jeitinho lá, porque é uma cidade fantasma, uma cidade horrível. (...) Tenho uma sugestão muito boa: a gente gravar um disco. É muito melhor do que esse bate-boca".

A verdade é que, no saldo de toda essa batalha de egos, o cantor Raimundo Fagner sai vitorioso: houve uma época em que o cearense reinou absoluto na MPB por pelo menos seis anos, ficando atrás somente do rei Roberto Carlos em vendagem de discos. Lançou, seguidamente, quatro discos que curvaram a imprensa a seus pés e que são de extrema importância na sua carreira e na história da música brasileira: "Eu canto [quem viver chorará]" (1978), "Beleza" (1979), "Vento Forte" (1980) e a obra-prima "Traduzir-se" (1981). Esses discos contêm mega-sucessos como "Revelação", "Noturno", "Frenesi", "Eternas ondas" e "Fanatismo", que tomaram conta das rádios na época e lideram os pedidos do público até hoje em seus shows. Mesmo quando começou a corromper seu estilo, a partir do disco "A mesma pessoa" (1984), migrando da fase mais intelectualizada para a fase popularesca, Fagner perdeu o respeito da crítica, mas aumentou ainda mais o seu público e continuou a vender muitíssimos discos. São dessa fase os álbuns: "Romance no deserto" (1987), que trazia o mega sucesso brega "Deslizes", música certa até hoje no repertório de todos os tecladistas de churrascaria; "O quinze" (1989), que contou com os sucessos "Retrovisor" e "Amor escondido", este incluído na trilha sonora da novela Tieta, da Rede Globo; e, por fim, o disco "Pedras que cantam" (1991), cuja faixa-título também foi tema de novela da globo, e trazia o estrondoso hit cafona "Borbulhas de amor", versão em português da canção "Borbujas de amor", de Juan Luís Guerra. Cabe ressaltar uma coisa: entre 1984 e 1987, Raimundo Fagner gravou dois ótimos discos com o rei do baião Luiz Gonzaga, os quais também tiveram êxito de vendas. Somente após o disco "Pedras que cantam" (1991) é que Fagner passou a fazer discos inexpressivos tanto para a crítica quanto para o público. A partir de 1992, deu-se o seu ócio criativo, mas ainda assim, ele teve algumas músicas bastante executadas em rádios, como "Lembrança de um beijo" (1994) e "Espumas ao vento" (1997), composições de Aciolly Neto pinçadas do repertório de Flávio José, forrozeiro paraibano que faz um enorme sucesso no Nordeste. No início da década de 2000, Fagner voltou à tona novamente com discos ao vivo de releituras de sucessos e outro gravado com o maranhense Zeca Baleiro, que trouxe o sucesso "Dezembros", tema de Reynaldo Gianechinni na novela "Da cor do pecado" (2002). Recentemente, o cearense gravou um CD intitulado "Fortaleza", que conta com a participação do onipresente Jorge Vercillo numa das faixas, mas está muito longe de ter a força e a genialidade de um disco como "Beleza" (1979).

Em contrapartida, o baiano Caetano Veloso, que tem muito tempo de carreira à frente de Fagner e possui uma quantidade bem maior de trabalhos lançados, dentre LPs, CDs e DVDs, jamais conseguiu vender sequer um terço do que o cearense vendeu. Enquanto no auge de sua verve criativa, entre 1975 e 1983, Caetano vendia uma média de 90 mil cópias por LP, Fagner, antes mesmo de prensadas as cópias de um lançamento seu, já possuia pedidos de mais de 350 mil discos em lojas espalhadas pelo Brasil - o que equivale a quase quatro discos de ouro. Caetano, por seu lado, só veio receber disco de ouro em 1994, com as vendagens do CD "Fina Estampa", disco de releitura de canções latinas, e nunca por um disco totalmente autoral. E o baiano só ultrapassou a marca de 1 milhão de cópias por um trabalho em 1999, quando já tinha 32 anos de carreira, e com o disco ao vivo "Prenda minha", que era puxado pelo mega-sucesso-brega-chiclete "Sozinho", composição de Peninha, autor de outros hits cafonas como "Sonhos" (que o próprio Caetano gravou em 1981) e "Alma gêmea" (sim, aquela das 'metades da laranja') que invadiu nossos ouvidos na voz de Fábio Jr.

Caetano até que merecia ter vendido tanto quanto Fagner na mesma época, pois fez muitos e bons álbuns como: "Qualquer coisa" (1975), "Muito [dentro da estrela azulada]" (1978), "Cinema Transcendental" (1979), "Outras palavras" (1981), "Cores, Nomes" (1982) e "Uns" (1983), mas é que, apesar de colecionar críticas elogiosas de jornais estrangeiros a seu trabalho e de ser querido por praticamente toda a nata da tradicional e da novíssima MPB, ele não possui a proximidade com o público e o carisma do seu "inimigo", Raimundo Fagner. Bom mesmo seria se Caetano acatasse a sugestão de seu desafeto, e gravasse um disco junto com ele, para ver se acabava logo com toda essa descabida "batalha" de egos. A música popular brasileira lucraria muito mais com isso!
Fontes pesquisadas:
Revista Veja - Ed. 1928 (26/10/2005)
Montagem/ilustração: Paulo Simões

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Raimundo Fagner e o disco mais problemático da MPB.

Manera, Fagner, manera!

O cantor cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes despontou na cena musical brasileira no início dos anos 70, devido em grande parte à regravação de Mucuripe (Fagner/Belchior) por Elis Regina, que acabou estourando nas rádios do país. Em 1973, Fagner gravou pela Philips o seu primeiro LP, Manera Fru Fru Manera, que corre o risco de entrar para o livro dos recordes como o mais problemático da história da música popular brasileira. O fantástico álbum contou com participações de Nara Leão, Bruce Henry e o percussionista Naná Vasconcelos (que se tornara, tempos depois, mundialmente respeitado). Faixas como "Último Pau-de-Arara", "Pé de Sonhos", "Como se fosse", "Penas do Tiê", "Nasci para chorar" (pinçada do repertório de Roberto Carlos) e "Mucuripe" chamaram a atenção da crítica de todo o país.



No entanto, o disco foi puxado pela canção "Canteiros" (poema de Cecília Meirelles musicado por Fagner), que se tornou um mega-sucesso, campeão de execuções nas rádios de todo o Brasil. Deu-se início, poucos tempo depois, à série de problemas que o disco viria a causar. As três filhas de Cecília Meirelles entraram com uma queixa-crime contra a Philips e contra o compositor por ter modificado e usado no seu disco um dos poemas da poetisa, sem ter colocado o nome dela nos créditos. O disco foi retirado de circulação e, posteriormente, relançado com a faixa "Cavalo-ferro" no lugar de "Canteiros". A partir daí, o LP original com a canção "Canteiros" tornou-se cult, passando a ser - juntamente com "Louco por você", o primeiro e renegado disco de Roberto Carlos - o artigo mais procurado dos sebos existentes nas grandes cidades, e vendido por altas somas.

O mesmo incidente viria a se repetir anos mais tarde, em 1978, com o disco "Eu canto", que continha o estrondoso sucesso "Revelação". No referido álbum, Fagner havia musicado "Motivo", outro poema de Cecília Meirelles, e novamente não tinha dado os créditos à autora. Após nova batalha na justiça, o disco de 78, no auge das vendas, também foi retirado de circulação e prensado novamente sem a faixa "Motivo" - e, no lugar dela, incluiu-se "Quem me levará sou eu", música de Dominguinhos e Manduka, com a qual Fagner havia ganhado há pouco um festival de música. O título daquele disco também teve que ser modificado, pois "Eu canto" era justamente o início do primeiro verso do poema de Cecília Meirelles, não tinha sentido manter o referido título sem a música presente no álbum . A nova prensagem saiu com o título "Quem viver chorará", nome de uma das faixas. Sobre essas brigas na justiça, Fagner afirmou em entrevista à Revista Ele Ela de janeiro de 1981 o seguinte: "Maria Matilde (uma das filhas da poetisa) queria que eu pagasse uma nota por coisa que acredito um absurdo. (...) No fundo, estou divulgando a obra de Cecília Meirelles. Meu trabalho e de meus parceiros não estão aquém do trabalho de Cecília, com todo respeito. A obra de Cecília está bem situada no meu trabalho. Mas Maria Matilde está abusando com seus sentimentos recalcados (...). Legalmente, ela não tinha muito a receber: uma nota tão pequena que nem recupera o tempo que perdeu e o ódio que destilou. Este incidente, de certa forma, cortou também minha espontaneidade de trabalhar com os versos de Cecília Meirelles, pois tinha mais três músicas para gravar, mas perdi o gosto. Maria Matilde ganharia mais se deixasse eu cantar essas músicas".


Somente em 2000 (exatos 27 anos após o lançamento de "Canteiros") é que Fagner - após acordo com os familiares da poetisa - pôde regravar a canção num CD duplo ao vivo de releituras de sucessos. No entanto, a versão original contida no LP "Manera Fru Fru Manera" jamais foi liberada para relançamento, e o CD remasterizado permanece com a faixa "Cavalo Ferro" no lugar de "Canteiros". O mesmo aconteceu com os discos "Orós" (1977) e "Eu canto" (1978), que foram relançados recentemente sem as faixas "Epigrama nº 9" e "Motivo", respectivamente, devido à não-liberação por parte da família Meirelles.

Em 1999, um novo imbróglio se criou em torno de "Penas do Tiê", uma das canções mais conhecidas de Fagner, também incluída no disco "Manera Fru Fru Manera". Fagner alegou, quando do lançamento do disco, em 1973, que "Penas do Tiê" era uma adaptação sua do folclore, de uma canção recolhida do domínio público, mas na verdade ela nada mais é do que uma regravação de "Você", uma composição de Hekel Tavares (1886-1969) e Nair Mesquita, editada em 1928 e dedicada à cantora lírica Gabriella Besansoni Lage. O "deslize" de Fagner, a princípio apontado pelo jornalista Tárik de Souza, do jornal do Brasil, demorou três décadas para ser descoberto, e só o foi porque, no final dos anos 90, Alberto Hekel Tavares (filho do compositor Hekel Tavares) ouviu uma gravação da Orquestra Pró-Música do Rio de Janeiro, tendo como solista a cantora Ithamara Koorax, e pôde comparar com as gravações anteriores de Fagner. "É inacreditável, tratava-se da mesma canção", diz Alberto Hekel. Segundo ele, Fagner mudou apenas duas palavras. Desde sua gravação inicial, em 1973, "Penas do Tiê" (originalmente cantada por Fagner em duo com Nara Leão) teve diversas regravações: Joanna a gravou no CD Vidamor, pela BMG; a Philips a relançou duas vezes; e Nana Caymmi a canta em dueto com o próprio Fagner no CD "Amigos e Canções", também da BMG. Os filhos de Hekel Tavares, compositor da música, entraram com uma ação na justiça exigindo indenização por danos materiais e morais, devido à usurpação da obra de seu pai. O caso encerrou no final de 2006, quando Fagner foi condenado ao pagamento de direitos autorais referentes à musica "Penas do Tiê", além de determinar a inclusão de erratas nas obras não distribuídas e a divulgação da autoria da música debatida. Mas o pedido de indenização por danos morais foi julgado improcedente. Recentemente, uma coletânea intitulada "A arte de Fagner", lançada pela gravadora Universal (antiga Philips) trouxe a gravação original de "Penas do Tiê" já com o título de "Você", e creditada aos verdadeiros autores.

Sobre o disco "Manera Fru Fru Manera", afirma-se, ainda, que Fagner pegou de Belchior a letra de "Mucuripe" e ignorou que ela já estava musicada, fazendo uma nova. Contudo, apesar de todas as confusões já causadas, "Manera Fru Fru Manera" permanece em catálogo, por causa de seu incomensurável valor criativo e histórico, o que o coloca na lista dos melhores discos já lançados na música popular brasileira.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Entrevista: Elisa Lucinda


Elisa Lucinda nasceu em Vitória, no Espírito Santo, em 1958, onde se formou em jornalismo e chegou a exercer a profissão. Em 1986, mudou-se para o Rio disposta a seguir a carreira de atriz. Publicou, entre outros, os livros A Menina Transparente, "Euteamo" e suas estréias, O Semelhante e a Coleção Amigo Oculto (trilogia infantil) e gravou os CDs de poesias. Elisa foi a estrela da abertura da III Feira do Livro de Mossoró, onde concedeu esta entrevista. Ela fala do amor ao trabalho, à poesia do cotidiano e à arte de fazer seguir o dom para viver melhor.

Williams Vicente - Você acha que deve haver mais debates sobre literatura?
Elisa Lucinda - As crianças vão à escola e saem sem saber que livro é arte, que o escritor é um artista, sem saber que quando elas amam Harry Potter, Branca de Neve e Dom Quixote no cinema, tudo isso foi livro. A novela que ele adorou foi um roteiro, alguém escreveu. Então ninguém ensina a nossa língua com paixão, como arte, a gente não ensina que o escritor é um artista. Ninguém diz 'leia esse livro, olha que livro maravilhoso', igual um disco que bota uma música pra tocar e você diz, 'aí, empresta?'"


WV- Seria falta de incentivo?
EL - É falta de incentivo e de educação, de clareza, de visão da educação. A educação é muito cheia de conteúdo e sem emoção. O que está mais me incomodando no Brasil é como se fala mal a nossa língua. Estão concordando errado: a maioria 'fizeram'. Que maioria fizeram? E aí periga perder essa língua e suas possibilidades criativas. Não vai acontecer isso porque tem sempre um movimento de renovação natural para sobrevivência da língua, mas eu fico assustada. Acho que tem que saber português para formar novos leitores e autores.


WV - Você se formou em jornalismo, mas o que te levou a procurar a carreira de atriz?
EL - Eu já estudava poesia, declamação desde os onze anos e cresci querendo ser atriz. Fui ser jornalista porque meu pai disse "faz comunicação e fica aqui, você não vai ter que deixar nossa cidade-natal, não vai ter que sair de perto de nós, você é tão comunicativa", e me convenceu que gosto de palavras, ótimos argumentos. Nunca me arrependi de ter feito jornalismo, acho chiquérrimo.


WV - Nunca sentiu falta de exercer o jornalismo?
EL - Sinto falta de escrever uma coluna em jornal.


WV- Já teve?
EL - Já, depois parei, mas eu tô caminhando pra isso, pra fazer parte das ações do meu cinqüentenário, ano que vem. Eu não tenho vontade de parar de escrever. Escrever para mim não é nenhum sacrifício. Atenção jovens que vão me ler, acho que a coisa mais certa, mais inteligente que o ser humano tem a fazer no mundo é identificar os seus dons... o meu dinheiro, meu batom, o frango, o peixe que como, esse pão vem do meu trabalho que escolhi, que eu gosto de fazer. Meus empregos não são decididos por quem dá mais. Eu vou por onde mais me interesso e mais amo. O cara que não gosta de escrever dá três horas de trabalho tá louco pra ir embora. É muito ruim trabalhar no que não se gosta...sai muita gente prejudicada. Há policiais que deviam ser enfermeiros e há enfermeiros que deviam ser policiais (risos), de
tão grosseiros... é um segredo você andar em cima do seu dom. Não tem esse negócio de "ah! Odontologia dá mais!". Então, você pode ser um excelente cozinheiro, não tem esse negócio de que comida não dá dinheiro! Se você for o melhor, o melhor de você, não tem jeito. Eu sempre falo, se meu chefe quiser um outro profissional igual a mim, vai ter que ficar comigo. Pode até encontrar melhor, mas igual a mim não. Meu namorado também, mulher igual a mim não tem, igual? Não tem, tem outras, todo mundo é um, e nesse sentido ninguém tem concorrente.


WV - De onde veio essa vontade, essa garra de querer ser única e mostrar isso pro povo?
EL - Aprendi isso em casa. Minha mãe sempre foi muito bacana, alegre, inteligente. Meu pai sempre dizia isso, "estou criando vocês, mas não me façam passar em qualquer alfândega do mundo e perder toda bagagem. A gente não perdeu nada. Tá tudo aqui".


WV - Quais foram as lições que você tirou do jornalismo e trouxe pra carreira de atriz e pra literatura?
EL - A lição melhor foi a informação. Muita coisa que eu pensava ganhou fundamento. Eu nunca tinha estudado filosofia daquele modo. Compreendi uma coisa do Brasil: geografia... eu poderia ser uma excelente aluna de geografia! Eu nunca fui porque não tive professores que me explicassem que era geografia meu bairro, que era geografia minha praia, a chuva, que era meu bairro, que ficava dentro de um município, que ficava dentro de um estado, que ficava dentro de um país e eu ali dentro. A gente nunca estudou assim. A história, as convenções da vida da gente, eu não sabia que quando falava mal de história eu tava falando mal de mim.


WV - Você acha que isso também é uma deficiência do ensino?
EL - É uma deficiência do ensino, uma falta de visão do ensino brasileiro que vem sendo cada vez menos inteligente. Tem que ter disponibilidade pra ser criativo, sem medo de errar. Isso é que um ser inteligente, não é decorar um catálogo de telefone, inteligência é saber seis coisas, mas fazer dessas seis coisas tudo que sabe. A gente fica numa cultura de vestibular, não sabe nem pra que, aí você diz, fale sobre sua cidade. Aí vem aquela vergonha, não tem as palavras, o estudante sem repertório.


WV - Você já esteve em algumas produções da Globo, mas o teatro fala mais alto?
EL - Eu fico dois anos sem fazer televisão, mas não fico dois anos sem subir no palco. Não é que televisão seja menos, mas o palco é o lugar mais seguro. Meu espetáculo (Parem de Falar Mal da Rotina) tem censura pra 14 anos, mas não deveria ter nenhuma. É uma besteira. Só porque começo tomando banho pelada, deve ser por isso, mas não tem nada demais, é uma peça sobre o cotidiano. Mas não tem nada a ver de pornô. É uma idéia de uma pessoa estar em sua casa, em seu cotidiano e não há coisa mais cotidiano do que um bom banho. É uma pena porque esse espetáculo forma leitores. Por exemplo, em todo espetáculo meu, eu sorteio uma bolsa. Recito um poema e quem adivinhar o autor leva a bolsa (risos) e, a cada espetáculo, falo um poema novo.

WV- Você escreve sobre o cotidiano, a poesia do cotidiano, mas já se aventurou pela literatura infantil. De onde vem esse seu lado?
EL - Eu sou uma criança. Eu gosto da onda da criança, gosto de andar com gente que gosta de brincar de criança, de deixar a criança solta, é outro jeito de tocar a vida. E é muito chato ficar a vida sisuda o tempo inteiro, o dia inteiro. Tem gente que já acorda assim: "amanhã eu tenho prova. Ai, meu Deus, amanhã eu tenho prova". A prova é amanhã, mas vai apodrecendo as outras horas que não têm nada com isso, com a prova marcada de amanhã. E as outras horas que não têm nada com isso ficam sofrendo. Pra mim, escrever pra criança é me deixar em casa com meus coleguinhas.


WV - Há quem critique a poesia do cotidiano por considerá-la menos culta. Isso te incomoda?
EL - É mesmo, é? Não sabia, não. Repete a pergunta. A minha ou a de todo mundo? Quem foi o babaca que disse isso? (risos). Espero que não seja ninguém que está patrocinando a Feira (Risos). É uma bobagem isso. Não vou comentar.


WV - Você passou pelo jornalismo, teatro, literatura, já gravou CDs de poesia?
EL - Já gravei dois, falei que não ia comentar, mas vou comentar. Acho que a pessoa que acha que poesia do cotidiano é menos culta porque acha que poesia não deve ser entendida por todos, ela acha que poesia é um assunto que deve ficar elitista, na prateleira, para poucos. Quem fala que poesia do cotidiano é ruim, tá falando mal de Mario Quintana, Drumond, Adélia Prado, olha o time? E não preciso nem entrar na brincadeira. Acho gravíssimo dizer que é menos culto. O que é menos culto? Acho que uma boa cultura emocional, criativa, pode gerar pessoas muito mais cuidadosas.


WV - Você se vê fazendo uma das coisas, TV ou teatro, por exemplo, ou você acha que só estará feliz se puder explorar toda idéia que vier à mente?
EL- Eu já sei que não dá pra explorar todas, mas vou botando na fila as coisas que têm pra fazer e vou fazendo tudo ao mesmo tempo, tocando a vida. É tudo ao mesmo tempo, né? Tudo é ao mesmo tempo. Eu gosto de explorar minhas potencialidades. Vou fazendo tudo dentro do possível, da hora, porque a gente às vezes quer fazer uma coisa e não está na hora de fazer.


WV - A Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) organizou um festival de teatro amador. O que você acha do teatro amador?
EL - A palavra diz, é o teatro de quem ama. É no teatro amador que a gente aprende a fazer tudo. Foi lá que aprendi a passar batom. Me apresentava nos teatros do interior do Espírito Santo que hoje são ruins - abafa o caso - imagina 21 anos atrás? Mas aprendi a fazer a iluminação que tinha naquele teatrinho, figurino, cenário... então, isso que estava falando de estudar, de aprender, o ator entender a luz que o está iluminando. O teatro amador é o cerne do teatro profissional. Um bom ator de teatro dá um excelente ator de televisão, mas um bom ator de televisão no teatro parece que está morrendo afogado no palco, não sabe nem pisar, projetar a voz normalmente.


WV- O que é a poesia? Existe alguma fórmula?
EL - Não tem. A única coisa que poesia não tem é fórmula. Existe o dom, quanto mais a gente lê poesia, estuda poesia, a gente fica inspirado a escrever. Vai educando. Tenho um filho de 25 anos que foi educado com poesia, e o resultado é bom. Poesia refina. Poesia pra mim é uma forma de olhar o mundo, e quanto mais liberdade pra gente passear nos nossos bastidores, melhor pra poesia. Quando um ser humano lê um poema 'estou me sentindo um cocô de tristeza' (risos), então talvez, mesmo com essa palavra que não é tão bonita, mas pode estar começando um poema e tocar seu coração.

sábado, 27 de outubro de 2007

Pós-modernidade: o tempo acelerado e a imagem que se assume descartável antes da maturação


Em outubro de 1992, Madonna lançava uma cartilha definitiva da sexualidade pós-moderna: o disco "Erotica", o filme "Corpo em Evidência" e o livro-fantasia de conotações pornô "Sex" diziam ao mundo que os padrões da sociedade tradicional - que estabeleciam o papel da mulher como mãe, educadora e dona-de-casa, enquanto ao homem cabia o de pai, chefe de família, responsável pelo sustento da casa - já não existiam.

Como resultado do movimento feminista dos anos 60, saindo de uma era conservadora Madonna apareceu com suas roupas e atitudes, reformulando o papel revolucionário da mulher, ajudando a construir uma nova identidade a partir da moda, da sexualidade e da atitude diante de relações de poder. "Madonna brinca, de forma direta com os papéis sexuais, usa roupas masculinas, ocupa posições masculinas, propondo a quebra de estereótipos convencionais, como na turnê 'Blondie Ambition' em que seus bailarinos aparecem com seios e suas bailarinas, com pênis", explica a antropóloga Karlla Souza.

A cantora norte-americana nos apresenta um conjunto de contradições. Na elaboração de alguns clipes e na apresentação de algumas turnês, principalmente em 'Erotica', ela explora a imagem sexual e se apresenta como uma mulher dominadora, mostrando a liberdade feminina como algo natural e sadio, ironiza códigos sexuais e brinca com gestos obscenos. Em outras épocas passa a imagem da mulher romântica, passiva e sofredora. "Madonna choca quando surge de terno e segurando a virilha, realçando a artificialidade da imagem de poder do estereótipo masculino. Ao mesmo tempo, ela apresenta o papel das mulheres coisificadas, dessa feita enquanto instrumento sexual, avaliadas segundo a aparência, o glamour e a jovialidade", diz Karlla Souza.

Senhora ou profana, burguesa ou espiritualizada, Madonna invade os lares e as mentes do mundo inteiro através da cultura da mídia e do consumo. "Como resultado da sofisticação que os meios de comunicação de massa foram tomando, ela vem constituindo nos nossos dias a principal forma de socialização. Os produtos veiculados pela mídia não podem ser considerados apenas como entretenimento inocente, mas, por terem um cunho socializador e por situarem-se num terreno de lutas e representações dos atores sociais. O estudo da cultura da mídia permite, então, que se amplie, para além da crítica ideológica, a crítica para questões da identidade e da sexualidade e consumo" avalia Karlla.

O resumo da história é que hoje as mulheres passaram de donas-de-casa a donas de si. Mas, baseado na noção de pós-modernidade, a identidade das mulheres aderiu à bricolagem de elementos. A idéia predominante do indivíduo é formar imagens agradáveis de si mesmo. "Num verdadeiro processo de experimentação, tais imagens nunca existem em definitivo, mas estão em constante reformulação, em reaproveitamentos ou combinações de elementos diversos", conta a antropóloga.

A bricolagem é um fenômeno presente nas artes, na música, na informação. "O que vemos despontar no cenário regional e nacional através das bandas de forró elétrico por exemplo, utilizando letras românticas e danças sensuais pode ser um exemplo do que acabamos de definir como sendo uma bricolagem. Misturando elementos das canções e das performances de Madonna, associando isso ao ritmo quente e fogoso do forró, o estilo vem ganhando espaço através da indústria midiática e do comércio de símbolos sexuais. As mulheres exibindo seus corpos seminus chegam a lembrar Madonna feliz e dançante do início de sua carreira, porém, recuperando o arquétipo da mulher-objeto, e não daquela que aposta no futuro e na sua vontade de se expressar", define Karlla Souza.

Portanto, entendo que a imagem da mulher pós-moderna no palco vale para todas que, aliás, provavelmente, sequer sabem por que posam tão sensuais para capas de discos, ou porque rebolam para além do som. "A maldição da mídia é que ela tem que acompanhar a aceleração da pós-modernidade. Seus produtos não têm um tempo necessário de maturação. Tudo acaba sendo impiedosamente atropelado, e nesse frenesi sobram alguns restos e muitas reaproveitações. As coisas não evoluem, elas se complicam, e antes mesmo que se resolvam, são simplificadas em um número infinito de releituras e reapropriações grosseiras, de figurinos, imagens e som. O imperativo do comércio midiático tornou a novidade obsoleta e, antes mesmo que Madonna pudesse se tornar antiga, outras novidades tiveram de ser lançadas", explica Karlla Souza.

Por isso, o que parece ser é que a mulher decidida já não serve, a super-fêmea também já está fora de moda. "Erótica", por um lado, é uma obra musicalmente excelente, reveladora e pontua a virada de conceitos e liberdades, ou libertinagens. Por outro, 15 anos depois do estardalhaço, a efemeridade do nosso tempo levou a imagem ou a mulher a se adequar aos desígnios do novo mercado: é preciso assumir-se descartável para sobreviver.


"Erotica" e a quebra de tabus

O grande mérito do álbum "Erotica" - lançado em outubro de 1992 - foi ter dado um duro golpe na ignorância e hipocrisia predominantes na sociedade, ao promover a liberdade sexual numa época marcada pelo medo do "monstro" da AIDS. O perturbador e controverso álbum, no entanto, não se resume apenas a sexo, mas também apresenta algumas canções que falam sobre desentendimentos, incertezas, traições, tolerância e amor. Dentre os singles do disco, além da faixa-título, estão as canções "Fever", "Bad Girl", "Rain", "Deeper and Deeper" e "Bye Bye Baby". O álbum vendeu aproximadamente 7 milhões de cópias em todo o mundo e figura entre os melhores da carreira de Madonna.

Entrevista

Nila Araújo, nascida em 1978 em Campina Grande, na Paraíba, não queimou sutiã ou mesmo saiu às ruas erguendo bandeirolas de nenhum movimento reivindicatório. Em 1999, ela jogou para o alto tudo que fazia e decidiu apostar num sonho. Oito anos depois da façanha, começa a colher as notas plantadas de um trabalho antes dominado pelos homens, especialmente no Nordeste. Como um fruto 'de vez', mas devorado na Paraíba, a agora DJ Hunter (referência à cantora Björk e a postura adotada por ela na hora de caçar o melhor som) não esconde o desejo de devorar as discotecas do Rio Grande do Norte, onde têm forte relação com a paisagem da capital.

Williams Vicente - Como foi que você chegou até a música?
DJ Hunter - Freqüentando a noite, as baladas, me identifiquei com a música eletrônica. Passei a ser baladeira e daí por diante tomei gosto por tentar fazer aquilo que eu achava que faltava nos dominadores das pistas. Mas antes eu já curtia os primórdios, como Depeche Mode, Information Society, Erasure, kraftwerk... então antes de me tornar baladeira, já curtia os primeiros sons eletrônicos. Sempre prestei atenção no que faltava devido a cultura da cidade (Campina Grande) estar muito ligada ao rock e a música alternativa. Digamos que a música eletrônica no seu boom (DJ's) chegou fazendo parte dessa cultura trazida primeiramente pelo gueto GLS, posteriormente aderida por outros guetos e atualmente por todos os grupos sociais na cidade.

WV - O que você fazia antes disso?
DH- Trabalhava em locadoras de vídeo, pois também sou cinéfila, ou seja, procuro fazer o que gosto (risos).

WV- Então quer dizer que o universo GLS é uma fonte inesgotável de lançamentos de tendências?
DH- Sem dúvidas, pois eles têm toda uma cultura envolvida com a música eletrônica. Quando você fala em boate, ou vai a uma cidade que tem boate, ou você encontra uma boate GLS ou muitos deles nas baladas. Porém, eles têm seu próprio estilo e conhecem aquilo que gostam e que consomem. Cultura no nosso meio é fundamental, você tem que saber o que está consumindo, como curtir, e saber sobre MPB, bossa nova, o mesmo se dá na musica eletrônica.

WV - Isso quer dizer que o universo GLS é mais antenado e tem gosto melhor pela música?
DH - Não, isso não quer dizer que eles tenham gosto melhor, absolutamente. Apenas que sabem sobre aquilo que estão ouvindo, diferentemente da cultura de massa que não identifica os estilos, as vertentes. Mas também acontece o preconceito, pois, tanto eles não aceitam dentro do gueto outros estilos que não sejam o deles, como também se você tocar a vertente deles em outro ambiente, logo irão identificar que se trata de uma música mais 'alegre' (risos).

WV - Por que há essa separação, a música eletrônica não é essencialmente de massa?
DH - Falei demais? (risos). Não, ela se encontra na massa, mas os estilos, as vertentes tendem a separar os grupos sociais, como vemos nos grupos que consomem outros estilos, como exemplo: quem curte pagode tá lá na mesa de bar ouvindo, quem curte MPB tá no barzinho, rock tá no show, e na música eletrônica, mesmo que você tenha um DJ em qualquer desses lugares, ele tem que se adaptar ao público. Por exemplo: se o Dj vai tocar pra um grupo que consome o padoge, ele tem que agradá-lo chegando o mais próximo possível da realidade deles, tocando funk por exemplo. Se for tocar pra galera roqueira, tem que tocar batida quebrada, com big beat, breakbeat, drum n'bass, hip hop.

WV - Mas, qual é seu estilo?
DH - Breakbeat e big beat, mas às vezes sou chamada pra tocar em boites, aí faço o diferencial, atualmente com electro.OM - E isso não te incomoda? Ter que tocar de tudo e não apenas a vertente que você escolheu trabalhar?DH - Mas eu não toco de tudo, apenas comentei sobre como a música eletrônica chega aos diversos grupos. Eu apenas trabalho dois tipos de grupos, o GLBTS e o alternativo. Portanto, toco o que gosto. Tenho mais afinidade com a batida quebrada, com a qual posso criar e me dar a possibilidade de interagir melhor tocando ao vivo.

WV - Então, um Dj não é mero executor de música...
DH - Jamais ele pode ser. A ponto de levar a música eletrônica de alguma forma pra quem não tem acesso até está valendo, mas para aqueles que já fazem parte dessa cultura a coisa muda de configuração. Hoje em dia o DJ tem que produzir suas próprias músicas e não apenas executar músicas de outros produtores. Por isso, depende da cultura. DJ chegar numa cidade pequena fazendo scratch, neguinho não vai entender nada.

WV - Você deve ter encontrado muitas dificuldades para vencer nessa área, não? Por ser mulher talvez?
DH - Sim, no início. Mas hoje em dia isso é até motivo de valorização por não ser muito comum. No princípio passei alguns preconceitos e dificuldades. Os Dj's não se conformavam de participar de uma festa comigo e no final das contas eu ter sido a melhor da noite, por exemplo. Como pode, uma mulher? Voltando um pouco atrás, vejo essa divisão como arte ou entretenimento.

WV- Discotecagem é arte?
DH - O Dj que executa é entretenimento, o que se preocupa em fazer o diferencial é arte, depende. Porque ser Dj é discotecar.

WV - Dj dos anos 90 pra cá, quando a música eletrônica chegou às massas, virou moda, passou a ser cultuado como ídolo. Você se importa com o espaço que a profissão ganhou graças ao modismo, ao empurrão que a mídia deu? Vejamos: The Chemical Brothers, Moby, Fatboy, sem esses precursores da cultura pop o Dj não seria requisitado como o é hoje.
DH - Claro que não me importo até porque esses são profissionais mesmo, produzem cada um na sua configuração, não são Dj's que tocam apenas set´s mixados de outros produtores. Claro que não desvalorizo, pois é necessário que hajam os tocadores de set, mas o cara não pode parar por aí. Os Dj's devem ter como referência esses precursores pra compreender melhor o universo e ter a ambição de crescer e produzir, pra acabar com esse mito de que Dj não é músico.

WV - Isso quer dizer que você é uma artista?
DH - Me considero, pois além de produzir, procuro inovar quando estou tocando, interagindo com a música, construindo efeitos, não apenas executando. Também interajo com músicos, o que me traz o diferencial.

WV - São Jam's com bandas?
DH - Faço sim, já toquei com Chico Correia, Baixinho do Pandeiro, Etnia Sound, são músicos pernambucanos e paraibanos.

WV - E o RN? Eu sei que você costuma trabalhar por Natal, o que rola por lá?
DH - Cultura norte-americana. O que os EUA estiverem consumindo chega por lá. No caso, ainda atualmente a vertente mais forte por lá é o electro. A diversidade é interessante, mas ainda deixa a desejar no sentido produção musical e live P.A (entenda-se fazer discotecagem ao vivo).

WV - Mas baseada em que você diz isso? Você conhece a cena rave de lá?
DH - Em Natal, participo mais das festas dadas em boites. O único ambiente livre que toquei foi no MADA, mas a raves não, pois de uns dois anos pra cá o Psy Trance roubou esta cena, o que deixa os DJ's por fora. Não considero Dj de Psy um DJ, é um executor.

WV - E Mossoró, já ouviu falar?
DH - Bastante. Já recebi convites pra tocar aí, mas quando soube da distância, cabritei (risos). Como eu estava muito cheia de trabalho, deixei pra próxima. Um de meus alunos já tocou na cidade e me falou que o público é bem divertido, que não esperava pela agitação que foi. Achava que só na capital era assim.

WV - Voce é professora?
DH - Também. Me importo com a educação dos novos profissionais na área.

WV - Você promove cursos de DJ no caso...
DH - O próximo módulo inclusive será em João Pessoa. Quem sabe um dia em Mossoró.

WV - O que é a música eletrônica afinal?
DH - Música feita a partir de equipamentos eletrônicos sem a necessidade de tocá-los como instrumentos, mas de construir música a partir de sons que são construídos em softwares ou processadores de efeitos. Tem tudo, segue-se compasso, ritmo, harmonia, melodia, isso vai depender do profissional que a constrói. Espírito, o espírito do pós-modernismo, todos os ruídos que temos que ouvir hoje em dia pelas máquinas e usinas podem ser transformados em música. Como diz Björk, tudo é música.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Em tudo que é belo.

Prezados vercilianos, enquanto o disco novo - previsto para novembro deste ano - não sai, ouçam atenciosamente "Em tudo que é belo", um dos melhores trabalhos de Jorge Vercilo. Sobre o referido disco, escrevi isto há cinco anos:

INDICAÇÃO: CD EM TUDO QUE É BELO – Artista: JORGE VERCILO - Gravadora: Warner Continental – 1996

O segundo trabalho do cantor e compositor carioca - que, inclusive, rendeu-lhe uma indicação ao prêmio Sharp em 1997 - possui uma diversidade sonora e rítmica vista em poucos discos de MPB. É, sem dúvida, o mais eclético álbum de Jorge Vercilo e o que melhor demonstra sua versatilidade como cantor e músico-criador. Recheado de belos arranjos, o disco recebe uma nítida influência black (soul, funk, charm). Faixas como Mão do destino e Eu só quero dançar lembram a maneira de cantar do Michael Jackson e do Stevie Wonder. Fácil de entender revela a veia reggae do artista. Infinito amor e Raios da manhã dão um requinte especial ao disco, com doces cordas e um Jorge Vercilo pra lá de romântico. Oração Yoshua é a mais hermética do CD: constitui-se num mantra cantado em falsete e nos proporciona uma grande demonstração da técnica, modulação e amplitude vocal do cantor. O disco ainda contém o afoxé Fenômenos da natureza, cuja poética letra associa os sentimentos pela pessoa amada aos agentes e fatores da água, do ar, da terra e do céu. Himalaia tem influência ibérica no ritmo e nos arranjos; nela, Vercilo nos leva, com toda sua alquimia, a viajar de Sarajevo a Pequim e a voar sobre cordilheiras, sentindo a leveza do nosso ser. Na faixa-título, Jorge nos traz uma mensagem de esperança, tal qual Roberto Carlos cantando Paz na terra e Pensamentos (guardadas as devidas proporções, é claro!). Enfim, é o Jorge Vercilo compositor em seu estado mais puro, recebendo energia e inspiração de todas as correntes musicais e encantando com seu lirismo peculiar, inconfundível e indelével. Álbum indispensável em qualquer discoteca básica de MPB/POP.

Freddy Simões
(Outubro/2002).

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Michael Jackson novamente em apuros!


O eterno "Rei do Pop" se meteu mais uma vez em encrenca: está sendo processado em US$ 7 milhões mais danos por quebra de contrato pelo príncipe Abdulla El-Khalifa, de Bahrain, uma ilha a oeste da Arábia Saudita.

A história começou da seguinte maneira: dias após sua absolvição das acusações de abuso contra menor de idade, em meados de 2005, Michael mudou-se para a referida ilha e passou a ter todas as suas despesas custeadas por Abdulla - o que incluiu custos com advogados em inúmeros processos por dívidas -, uma conta na casa dos milhões de dólares. Em troca de todas as benesses, Jackson assinou um contrato em abril de 2006, no qual se comprometia a lançar dois álbuns, produzir um musical e escrever uma autobiografia para o príncipe, que por seu lado criou a 2seas Records, construiu um estúdio de altíssima qualidade e desembolsou US$ 7 milhões de adiantamento.

No entanto, Michael fez o que faria todo legítimo popstar em apuros: utilizou-se da desculpa de que iria se apresentar no MTV Japan Awards em maio de 2006, saiu de Bahrain e nunca mais botou os pés lá novamente. De acordo com o reportado pela Fox News, o príncipe afirma ter recebido apenas duas notas de assistentes do cantor afirmando que ele não cumpriria suas obrigações contratuais, e nada mais a acrescentar. Dessa forma, Abdulla entrou na justiça da Inglaterra e dos EUA em busca de indenização.

Na contramão de toda essa confusão, Michael Jackson lançará no início de 2008 uma versão comemorativa dos 25 anos de Thriller, seu mais fantástico álbum, que figura no Guinness Book como o disco mais vendido da história da música - até 2006, tinha sido adquirido por mais de 104 milhões de pessoas no mundo. A reedição virá com sobras de estúdio e alguns remixes, o que deverá alavancar ainda mais as vendas do álbum.