sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Entrevista: Maurício Cézar.

O músico Maurício Correia Cézar Neto tem 27 anos de idade, toca vários instrumentos e possui um vistoso currículo. Já acompanhou várias personalidades importantes da cena musical pernambucana, como Antônio Nóbrega e Nena Queiroga. Além disso, atua como professor de música nos ambientes SESC e coordena um grupo de chorinho para crianças e adolescentes. Nesta grata entrevista, concedida por e-mail, ele fala sobre sua carreira, formação e referências.

Freddy Simões - Com que idade você descobriu sua vocação para música? Há outros músicos na sua família?
Maurício Cézar - Aos sete anos de idade, lembro-me de ter comprado uma flauta doce com o dinheiro da merenda que havia levado para a escola e isso certamente contribuiu para que eu tomasse gosto pela música. Antes disso, guardo na memória algumas músicas que me chamaram atenção e as tenho como madrinhas da minha carreira musical. São elas: Lilás (Djavan), Construção (Chico Buarque) e One Day In Your Life (Michael Jackson). Meu pai foi clarinetista amador e não tenho tantas lembranças dele como músico, também não tive o prazer de tocar ao seu lado, já que ele faleceu num acidente de carro em 1986.

FS - Quando começou a estudar música? Qual a sua formação?
MC - Não me lembro com exatidão se em 97 ou 98, mas meu primeiro contato concreto com a música foi no colégio estadual Joaquim Távora, em Niterói-RJ. Estudei teoria e vários instrumentos que estavam à disposição da banda da escola, entre eles, escaleta, trompete e percussão. Após alguns anos, me mudei para Recife e continuei em bandas de escolas, agora, me dedicando ao clarinete que havia herdado do meu pai. Aos treze anos, comecei a participar de uma banda evangélica na qual ainda tocava clarinete. Aos quatorze anos, já ganhava os primeiros cachês com o teclado e de lá para cá não parei mais. Estudei piano popular no conservatório pernambucano de música e com os pianistas Tonny Yucatan e Marco Diniz; no cavaquinho tive Marco César como orientador e esse sim foi, sem dúvidas, a maior referência musical que tive nessa fase. Conclui o curso de graduação em música pela UFPE e estou no final de uma pós-graduação em história das artes e das religiões pela UFRPE.

FS - Você toca piano, cavaquinho, violão e acordeon. Considera-se multi-instrumentista ou seu instrumento é mesmo o piano?
MC- Considero-me um curioso! Porém, procuro tirar proveito dessa curiosidade e sei que boa parte do que aprendi até hoje foi fruto disso. Instrumentista é um termo que procuro dar a pessoas que têm um domínio muito grande de técnicas e repertórios. Seguindo essa visão, não acredito que tenhamos mais de uma dúzia de multi-instrumentistas no Brasil.

FS - No Brasil, há grandes pianistas-compositores-arranjadores como, por exemplo, Gilson Peranzetta, Ivan Lins, Antonio Adolfo e César Camargo Mariano. Com quem você se identifica mais?
MC - Apesar de admirar todos, tenho uma afinidade maior com o trabalho de César Camargo Mariano e o considero um dos maiores arranjadores que o Brasil já teve.

FS - Quais músicos estrangeiros têm influência no seu trabalho?
MC- O pianista Oscar Peterson e o cantor Stevie Wonder são, para mim, referências de técnica e criatividade, porém admiro o trabalho de muitos outros.

FS - Dentre os figurões da MPB (Chico, Caetano, Gil, Elis, Nara, João Bosco etc.), você se diz mesmo fã confesso de Djavan. Acaso poderia mensurar a importância da música dele na sua vida?
MC- Sou sim muito fã de Djavan, mas confesso que atualmente estou cada vez mais apaixonado pelo trabalho de Chico Buarque. Acho um crime que a juventude não tenha acesso a sua obra através das rádios FM’s.

FS - Você compõe?
MC - Sim, componho músicas, mas não consigo colocar letras, essa parte eu deixo para meus parceiros.

FS - O que lhe dá mais satisfação: sua atuação como professor de música nos ambientes SESC ou o trabalho como músico da noite?
MC- Os dois trabalhos têm o seu lado gratificante e, no momento, não conseguiria me afastar deles.

FS - Fale um pouco sobre grupo de chorinho que você coordena.
MC - O projeto foi idealizado pelo presidente do SESC, o prof. Josias Albuquerque, que é um grande admirador do choro e grande incentivador do nosso grupo. Temos pouco mais de um ano, e começamos com crianças do zero! Quer dizer, crianças que nem ao menos sabiam ao certo o que era choro. Hoje, me sinto muito orgulhoso pelo trabalho que temos feito, e agradeço a Deus por ter me escolhido para essa tarefa. Tenho a oportunidade de apresentar “música de verdade” a essas crianças e adolescentes. E já é visível o avanço delas. Já podemos discutir repertório e conversar sobre compositores de uma forma satisfatória e prazerosa.

FS - Quais os grandes nomes do chorinho, em sua opinião?
MC - Vou citar alguns mestres: Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho, Rossini Ferreira, Luperce Miranda(esses dois últimos pernambucanos). Entre seus discípulos estão: Hamilton de Holanda, Marco César, Yamandu Costa, Danilo Brito, etc.

FS - Quais as personalidades com quem você teve mais prazer em tocar ou gravar em estúdio?
MC - Antônio Nóbrega, certamente foi o mais divertido! Além disso, ele passa um clima muito bom no estúdio, e olhe que passamos por uma prova de fogo, já que o tom de uma das músicas foi alterado na hora da gravação e toda a digitação no instrumento teve de ser alterada.

FS - Qual a sua opinião acerca dos artistas que têm feito a novíssima MPB, tais como Jorge Vercilo, Zeca Baleiro, Ana Carolina, Maria Rita, Vander Lee, Vanessa da Mata, Roberta Sá, entre outros? Algum em especial lhe chama a atenção?
MC- Sei que minha resposta será polêmica, mas serei bem sincero. Todos acima têm seus méritos, principalmente por conta desses problemas com a pirataria. Admiro o trabalho de Jorge Vercilo e de Zeca Baleiro - esses dois pra mim têm um maior destaque no presente momento. Vivemos uma constante queda na qualidade técnica dos cantores e, apesar da evolução dos equipamentos de áudio, como retorno auricular, podemos perceber que a desafinação é constante nos shows de alguns desses artistas. Em alguns casos não sabemos se o artista está cantando ou gritando, as melodias não são tão marcantes como as do passado, vivemos uma queda constante na construção melódica, e a impressão que eu tenho é que agora só o ritmo interessa. Enfim, de trinta anos pra cá, a qualidade musica caiu. Tenho lá minhas dúvidas se a solução seria regravar músicas antigas, pois ouvi um dia desses a gravação de Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque), na voz de Ana Carolina, e tive uma decepção inigualável.

FS - No final do ano passado, a cantora Ivete Sangalo gravou um DVD no Maracanã lotado – em superprodução comparada somente às da popstar Madonna – e foi alçada definitivamente ao patamar de estrela maior da música brasileira e recordista de vendas no país, mesmo com a pirataria. Você gosta do trabalho dela?
MC - Não! Mas ela é muito simpática!

FS - E de Pernambuco, qual o artista que você mais admira?
MC - Silvério Pessoa, Alceu Valença e Antonio Nóbrega.

FS - A qualidade e criatividade da música popular brasileira entrou em declínio a partir dos anos 90 ou essa é uma opinião de críticos nostalgistas e conservadores que acreditam não existir nada melhor após a geração de Chico e Caetano?
MC - Concordo com os críticos nostalgistas e levanto uma questão: diga-me três músicas desses últimos anos que serão consideradas hinos, como Carinhoso, O bêbado e a equilibrista ou Wave? Diga-me três cantores que terão seus nomes lembrados, como Elis Regina, Nelson Gonçalves e Tim Maia? Diga-me três músicas que exprimam tanto sentimento quanto Atrás da porta, Suburbano Coração ou ainda Trocando em miúdos? Será que tem?

FS - Música é arte e, portanto, expressão da individualidade de seu criador. Para você, a música é forma de libertação, válvula de escape das mazelas emocionais ou profissão como outra qualquer?
MC - As três.

FS - Muitas vezes, quando se diz a alguém, "sou músico", é possível ouvir a pergunta "sim, mas você não trabalha?". Por quê, num país de musicalidade tão rica quanto o Brasil, ainda há quem enxergue a música de maneira tão preconceituosa e ignorante? Por que ainda é tão difícil se viver de música neste país e, principalmente, no Nordeste?
MC - Certamente o maior culpado disso tudo é o próprio músico que nunca se deu muito respeito. Uma prova disso é a Ordem dos Músicos, que deveria funcionar como um órgão fiscalizador assim como o Detran, mas, como sabemos, é comum termos que nos sentar em um barzinho para escutar um cara que não tem condições de cantar nem no banheiro. Então, eu lanço outra pergunta: eu poderia consultar pacientes ou levantar edifícios ou ainda julgar inocente ou culpado um bandido? A resposta é lógica, mas por que qualquer um pode se dizer músico? Cadê a fiscalização?

FS - Quais os seus projetos futuros? Casamento e filhos fazem parte dos seus planos?
MC - Estou amadurecendo projetos na área instrumental e pretendo iniciá-los no começo de 2008. Estarei me casando em dezembro e estou bastante feliz por isso. Tenho a mulher que pedi a Deus e, se tudo der certo no lado profissional, os filhos virão em breve.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Raimundo Fagner x Caetano Veloso: histórica batalha de egos na música popular brasileira!

Eles marcaram para sempre a música popular brasileira - cada qual com um estilo peculiar - e conquistaram uma legião de admiradores no decorrer de suas longevas carreiras. O primeiro, Raimundo Fagner Cândido Lopes, é cearense de Orós. O segundo, Caetano Emanuel Vianna Teles Veloso, baiano de Santo Amaro da Purificação. Ambos poderiam ter compartilhado o sucesso e se tornado amigos e parceiros musicais. No entanto, tornaram-se protagonistas de uma lendária briga, iniciada ainda nos anos 70 e que perdura até os dias atuais. Segundo Fagner, a briga iniciou-se no dia em que Caetano o chamou a sua casa, juntamente com outros convidados, e se recusou a cantar, alegando cansaço. Fagner, em início de carreira, tomou posse do violão, fez um verdadeiro show e foi aplaudido sucessivas vezes pelos convidados. Caetano teve um acesso de ciúmes e fechou a cara. A situação piorou ainda mais quando, tempos depois, Caetano virou as costas a Fagner quando este conversava com Nara Leão, colocando-se entre os dois. Fagner jamais colocou os pés novamente na casa do baiano, que tachou publicamente o cearense de mau compositor e mau caráter, e só se refere a ele como "titica de galinha".


Fagner acredita que exista algo mais nessa briga do que a simples explosão de duas estrelas de temperamento forte. Ele acha que, na verdade, o que há são maneiras diferentes de ver a música. "A tropicália é uma ditadura cultural. Morreu há muitos anos. Era um som americano, cheio de reggae. Não foi fácil sobreviver à barreira cultural que eles armaram, que é pior do que a censura. (...) Caetano não é o malandro que pensa que acredita ser: é um ingênuo chegando às raias de otário. Só é esperto na música dele".

Em outubro de 2005, quando da ocasião de uma entrevista à Revista Veja, Fagner falou sobre outra briga que teve com Caetano: "(...) eu morava no Rio e era começo dos anos 80. Estávamos eu, Roberto Carlos e ele preparando uma canção para o 'Nordeste já'. Foi uma mobilização de artistas para angariar fundos para o Nordeste, que havia passado por uma seca enorme. O Roberto, com aquele jeito apaziguador, começou a falar como era legal o fato de eu e Caetano estarmos juntos, depois de brigarmos tanto. Daí, Caetano foi se lembrando das brigas e se zangando. Eu sabia que ele estava com fome e fui à cozinha fazer alguma coisa para ele comer. Mas na minha geladeira só tinha ovo. Fiz o ovo e vinha vindo com ele para dar ao Caetano, mas ele continuou falando, falando, querendo confusão. Bom, terminei entrando no pau e jogando o ovo de Caetano no chão. Ele sabe que, comigo, é no tapa". Nessa mesma entrevista à Revista Veja, Raimundo Fagner complementa: "(...) tem uma história que diz que baiano não 'nasce', baiano 'estréia'. E Caetano tem um problema de ego: quer sempre aparecer. Quando não tem assunto, vai à mídia e diz que é melhor que o Chico Buarque e o Milton Nascimento juntos".

Em setembro de 2006, Fagner falou ao programa Fantástico, da Rede Globo, como resposta a Caetano, o qual, três semanas antes, havia tachado o cearense de "besta" no mesmo programa: "eu aprendi a rebeldia com ele. Quem inventou a rebeldia no Brasil? Caetano Veloso. As duas coisas de que mais Caetano gosta são: ser elogiado pelo New York Times - que é muito mais importante do que uma crítica no Brasil, que ele menospreza - e esperar eu falar mal dele. São as duas coisas de que mais Caetano gosta! Agora, como ele fala tanto na terra dele, Santo Amaro da Purificação, como eu falo de Orós, ele podia dar um jeitinho lá, porque é uma cidade fantasma, uma cidade horrível. (...) Tenho uma sugestão muito boa: a gente gravar um disco. É muito melhor do que esse bate-boca".

A verdade é que, no saldo de toda essa batalha de egos, o cantor Raimundo Fagner sai vitorioso: houve uma época em que o cearense reinou absoluto na MPB por pelo menos seis anos, ficando atrás somente do rei Roberto Carlos em vendagem de discos. Lançou, seguidamente, quatro discos que curvaram a imprensa a seus pés e que são de extrema importância na sua carreira e na história da música brasileira: "Eu canto [quem viver chorará]" (1978), "Beleza" (1979), "Vento Forte" (1980) e a obra-prima "Traduzir-se" (1981). Esses discos contêm mega-sucessos como "Revelação", "Noturno", "Frenesi", "Eternas ondas" e "Fanatismo", que tomaram conta das rádios na época e lideram os pedidos do público até hoje em seus shows. Mesmo quando começou a corromper seu estilo, a partir do disco "A mesma pessoa" (1984), migrando da fase mais intelectualizada para a fase popularesca, Fagner perdeu o respeito da crítica, mas aumentou ainda mais o seu público e continuou a vender muitíssimos discos. São dessa fase os álbuns: "Romance no deserto" (1987), que trazia o mega sucesso brega "Deslizes", música certa até hoje no repertório de todos os tecladistas de churrascaria; "O quinze" (1989), que contou com os sucessos "Retrovisor" e "Amor escondido", este incluído na trilha sonora da novela Tieta, da Rede Globo; e, por fim, o disco "Pedras que cantam" (1991), cuja faixa-título também foi tema de novela da globo, e trazia o estrondoso hit cafona "Borbulhas de amor", versão em português da canção "Borbujas de amor", de Juan Luís Guerra. Cabe ressaltar uma coisa: entre 1984 e 1987, Raimundo Fagner gravou dois ótimos discos com o rei do baião Luiz Gonzaga, os quais também tiveram êxito de vendas. Somente após o disco "Pedras que cantam" (1991) é que Fagner passou a fazer discos inexpressivos tanto para a crítica quanto para o público. A partir de 1992, deu-se o seu ócio criativo, mas ainda assim, ele teve algumas músicas bastante executadas em rádios, como "Lembrança de um beijo" (1994) e "Espumas ao vento" (1997), composições de Aciolly Neto pinçadas do repertório de Flávio José, forrozeiro paraibano que faz um enorme sucesso no Nordeste. No início da década de 2000, Fagner voltou à tona novamente com discos ao vivo de releituras de sucessos e outro gravado com o maranhense Zeca Baleiro, que trouxe o sucesso "Dezembros", tema de Reynaldo Gianechinni na novela "Da cor do pecado" (2002). Recentemente, o cearense gravou um CD intitulado "Fortaleza", que conta com a participação do onipresente Jorge Vercillo numa das faixas, mas está muito longe de ter a força e a genialidade de um disco como "Beleza" (1979).

Em contrapartida, o baiano Caetano Veloso, que tem muito tempo de carreira à frente de Fagner e possui uma quantidade bem maior de trabalhos lançados, dentre LPs, CDs e DVDs, jamais conseguiu vender sequer um terço do que o cearense vendeu. Enquanto no auge de sua verve criativa, entre 1975 e 1983, Caetano vendia uma média de 90 mil cópias por LP, Fagner, antes mesmo de prensadas as cópias de um lançamento seu, já possuia pedidos de mais de 350 mil discos em lojas espalhadas pelo Brasil - o que equivale a quase quatro discos de ouro. Caetano, por seu lado, só veio receber disco de ouro em 1994, com as vendagens do CD "Fina Estampa", disco de releitura de canções latinas, e nunca por um disco totalmente autoral. E o baiano só ultrapassou a marca de 1 milhão de cópias por um trabalho em 1999, quando já tinha 32 anos de carreira, e com o disco ao vivo "Prenda minha", que era puxado pelo mega-sucesso-brega-chiclete "Sozinho", composição de Peninha, autor de outros hits cafonas como "Sonhos" (que o próprio Caetano gravou em 1981) e "Alma gêmea" (sim, aquela das 'metades da laranja') que invadiu nossos ouvidos na voz de Fábio Jr.

Caetano até que merecia ter vendido tanto quanto Fagner na mesma época, pois fez muitos e bons álbuns como: "Qualquer coisa" (1975), "Muito [dentro da estrela azulada]" (1978), "Cinema Transcendental" (1979), "Outras palavras" (1981), "Cores, Nomes" (1982) e "Uns" (1983), mas é que, apesar de colecionar críticas elogiosas de jornais estrangeiros a seu trabalho e de ser querido por praticamente toda a nata da tradicional e da novíssima MPB, ele não possui a proximidade com o público e o carisma do seu "inimigo", Raimundo Fagner. Bom mesmo seria se Caetano acatasse a sugestão de seu desafeto, e gravasse um disco junto com ele, para ver se acabava logo com toda essa descabida "batalha" de egos. A música popular brasileira lucraria muito mais com isso!
Fontes pesquisadas:
Revista Veja - Ed. 1928 (26/10/2005)
Montagem/ilustração: Paulo Simões

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Raimundo Fagner e o disco mais problemático da MPB.

Manera, Fagner, manera!

O cantor cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes despontou na cena musical brasileira no início dos anos 70, devido em grande parte à regravação de Mucuripe (Fagner/Belchior) por Elis Regina, que acabou estourando nas rádios do país. Em 1973, Fagner gravou pela Philips o seu primeiro LP, Manera Fru Fru Manera, que corre o risco de entrar para o livro dos recordes como o mais problemático da história da música popular brasileira. O fantástico álbum contou com participações de Nara Leão, Bruce Henry e o percussionista Naná Vasconcelos (que se tornara, tempos depois, mundialmente respeitado). Faixas como "Último Pau-de-Arara", "Pé de Sonhos", "Como se fosse", "Penas do Tiê", "Nasci para chorar" (pinçada do repertório de Roberto Carlos) e "Mucuripe" chamaram a atenção da crítica de todo o país.



No entanto, o disco foi puxado pela canção "Canteiros" (poema de Cecília Meirelles musicado por Fagner), que se tornou um mega-sucesso, campeão de execuções nas rádios de todo o Brasil. Deu-se início, poucos tempo depois, à série de problemas que o disco viria a causar. As três filhas de Cecília Meirelles entraram com uma queixa-crime contra a Philips e contra o compositor por ter modificado e usado no seu disco um dos poemas da poetisa, sem ter colocado o nome dela nos créditos. O disco foi retirado de circulação e, posteriormente, relançado com a faixa "Cavalo-ferro" no lugar de "Canteiros". A partir daí, o LP original com a canção "Canteiros" tornou-se cult, passando a ser - juntamente com "Louco por você", o primeiro e renegado disco de Roberto Carlos - o artigo mais procurado dos sebos existentes nas grandes cidades, e vendido por altas somas.

O mesmo incidente viria a se repetir anos mais tarde, em 1978, com o disco "Eu canto", que continha o estrondoso sucesso "Revelação". No referido álbum, Fagner havia musicado "Motivo", outro poema de Cecília Meirelles, e novamente não tinha dado os créditos à autora. Após nova batalha na justiça, o disco de 78, no auge das vendas, também foi retirado de circulação e prensado novamente sem a faixa "Motivo" - e, no lugar dela, incluiu-se "Quem me levará sou eu", música de Dominguinhos e Manduka, com a qual Fagner havia ganhado há pouco um festival de música. O título daquele disco também teve que ser modificado, pois "Eu canto" era justamente o início do primeiro verso do poema de Cecília Meirelles, não tinha sentido manter o referido título sem a música presente no álbum . A nova prensagem saiu com o título "Quem viver chorará", nome de uma das faixas. Sobre essas brigas na justiça, Fagner afirmou em entrevista à Revista Ele Ela de janeiro de 1981 o seguinte: "Maria Matilde (uma das filhas da poetisa) queria que eu pagasse uma nota por coisa que acredito um absurdo. (...) No fundo, estou divulgando a obra de Cecília Meirelles. Meu trabalho e de meus parceiros não estão aquém do trabalho de Cecília, com todo respeito. A obra de Cecília está bem situada no meu trabalho. Mas Maria Matilde está abusando com seus sentimentos recalcados (...). Legalmente, ela não tinha muito a receber: uma nota tão pequena que nem recupera o tempo que perdeu e o ódio que destilou. Este incidente, de certa forma, cortou também minha espontaneidade de trabalhar com os versos de Cecília Meirelles, pois tinha mais três músicas para gravar, mas perdi o gosto. Maria Matilde ganharia mais se deixasse eu cantar essas músicas".


Somente em 2000 (exatos 27 anos após o lançamento de "Canteiros") é que Fagner - após acordo com os familiares da poetisa - pôde regravar a canção num CD duplo ao vivo de releituras de sucessos. No entanto, a versão original contida no LP "Manera Fru Fru Manera" jamais foi liberada para relançamento, e o CD remasterizado permanece com a faixa "Cavalo Ferro" no lugar de "Canteiros". O mesmo aconteceu com os discos "Orós" (1977) e "Eu canto" (1978), que foram relançados recentemente sem as faixas "Epigrama nº 9" e "Motivo", respectivamente, devido à não-liberação por parte da família Meirelles.

Em 1999, um novo imbróglio se criou em torno de "Penas do Tiê", uma das canções mais conhecidas de Fagner, também incluída no disco "Manera Fru Fru Manera". Fagner alegou, quando do lançamento do disco, em 1973, que "Penas do Tiê" era uma adaptação sua do folclore, de uma canção recolhida do domínio público, mas na verdade ela nada mais é do que uma regravação de "Você", uma composição de Hekel Tavares (1886-1969) e Nair Mesquita, editada em 1928 e dedicada à cantora lírica Gabriella Besansoni Lage. O "deslize" de Fagner, a princípio apontado pelo jornalista Tárik de Souza, do jornal do Brasil, demorou três décadas para ser descoberto, e só o foi porque, no final dos anos 90, Alberto Hekel Tavares (filho do compositor Hekel Tavares) ouviu uma gravação da Orquestra Pró-Música do Rio de Janeiro, tendo como solista a cantora Ithamara Koorax, e pôde comparar com as gravações anteriores de Fagner. "É inacreditável, tratava-se da mesma canção", diz Alberto Hekel. Segundo ele, Fagner mudou apenas duas palavras. Desde sua gravação inicial, em 1973, "Penas do Tiê" (originalmente cantada por Fagner em duo com Nara Leão) teve diversas regravações: Joanna a gravou no CD Vidamor, pela BMG; a Philips a relançou duas vezes; e Nana Caymmi a canta em dueto com o próprio Fagner no CD "Amigos e Canções", também da BMG. Os filhos de Hekel Tavares, compositor da música, entraram com uma ação na justiça exigindo indenização por danos materiais e morais, devido à usurpação da obra de seu pai. O caso encerrou no final de 2006, quando Fagner foi condenado ao pagamento de direitos autorais referentes à musica "Penas do Tiê", além de determinar a inclusão de erratas nas obras não distribuídas e a divulgação da autoria da música debatida. Mas o pedido de indenização por danos morais foi julgado improcedente. Recentemente, uma coletânea intitulada "A arte de Fagner", lançada pela gravadora Universal (antiga Philips) trouxe a gravação original de "Penas do Tiê" já com o título de "Você", e creditada aos verdadeiros autores.

Sobre o disco "Manera Fru Fru Manera", afirma-se, ainda, que Fagner pegou de Belchior a letra de "Mucuripe" e ignorou que ela já estava musicada, fazendo uma nova. Contudo, apesar de todas as confusões já causadas, "Manera Fru Fru Manera" permanece em catálogo, por causa de seu incomensurável valor criativo e histórico, o que o coloca na lista dos melhores discos já lançados na música popular brasileira.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Entrevista: Elisa Lucinda


Elisa Lucinda nasceu em Vitória, no Espírito Santo, em 1958, onde se formou em jornalismo e chegou a exercer a profissão. Em 1986, mudou-se para o Rio disposta a seguir a carreira de atriz. Publicou, entre outros, os livros A Menina Transparente, "Euteamo" e suas estréias, O Semelhante e a Coleção Amigo Oculto (trilogia infantil) e gravou os CDs de poesias. Elisa foi a estrela da abertura da III Feira do Livro de Mossoró, onde concedeu esta entrevista. Ela fala do amor ao trabalho, à poesia do cotidiano e à arte de fazer seguir o dom para viver melhor.

Williams Vicente - Você acha que deve haver mais debates sobre literatura?
Elisa Lucinda - As crianças vão à escola e saem sem saber que livro é arte, que o escritor é um artista, sem saber que quando elas amam Harry Potter, Branca de Neve e Dom Quixote no cinema, tudo isso foi livro. A novela que ele adorou foi um roteiro, alguém escreveu. Então ninguém ensina a nossa língua com paixão, como arte, a gente não ensina que o escritor é um artista. Ninguém diz 'leia esse livro, olha que livro maravilhoso', igual um disco que bota uma música pra tocar e você diz, 'aí, empresta?'"


WV- Seria falta de incentivo?
EL - É falta de incentivo e de educação, de clareza, de visão da educação. A educação é muito cheia de conteúdo e sem emoção. O que está mais me incomodando no Brasil é como se fala mal a nossa língua. Estão concordando errado: a maioria 'fizeram'. Que maioria fizeram? E aí periga perder essa língua e suas possibilidades criativas. Não vai acontecer isso porque tem sempre um movimento de renovação natural para sobrevivência da língua, mas eu fico assustada. Acho que tem que saber português para formar novos leitores e autores.


WV - Você se formou em jornalismo, mas o que te levou a procurar a carreira de atriz?
EL - Eu já estudava poesia, declamação desde os onze anos e cresci querendo ser atriz. Fui ser jornalista porque meu pai disse "faz comunicação e fica aqui, você não vai ter que deixar nossa cidade-natal, não vai ter que sair de perto de nós, você é tão comunicativa", e me convenceu que gosto de palavras, ótimos argumentos. Nunca me arrependi de ter feito jornalismo, acho chiquérrimo.


WV - Nunca sentiu falta de exercer o jornalismo?
EL - Sinto falta de escrever uma coluna em jornal.


WV- Já teve?
EL - Já, depois parei, mas eu tô caminhando pra isso, pra fazer parte das ações do meu cinqüentenário, ano que vem. Eu não tenho vontade de parar de escrever. Escrever para mim não é nenhum sacrifício. Atenção jovens que vão me ler, acho que a coisa mais certa, mais inteligente que o ser humano tem a fazer no mundo é identificar os seus dons... o meu dinheiro, meu batom, o frango, o peixe que como, esse pão vem do meu trabalho que escolhi, que eu gosto de fazer. Meus empregos não são decididos por quem dá mais. Eu vou por onde mais me interesso e mais amo. O cara que não gosta de escrever dá três horas de trabalho tá louco pra ir embora. É muito ruim trabalhar no que não se gosta...sai muita gente prejudicada. Há policiais que deviam ser enfermeiros e há enfermeiros que deviam ser policiais (risos), de
tão grosseiros... é um segredo você andar em cima do seu dom. Não tem esse negócio de "ah! Odontologia dá mais!". Então, você pode ser um excelente cozinheiro, não tem esse negócio de que comida não dá dinheiro! Se você for o melhor, o melhor de você, não tem jeito. Eu sempre falo, se meu chefe quiser um outro profissional igual a mim, vai ter que ficar comigo. Pode até encontrar melhor, mas igual a mim não. Meu namorado também, mulher igual a mim não tem, igual? Não tem, tem outras, todo mundo é um, e nesse sentido ninguém tem concorrente.


WV - De onde veio essa vontade, essa garra de querer ser única e mostrar isso pro povo?
EL - Aprendi isso em casa. Minha mãe sempre foi muito bacana, alegre, inteligente. Meu pai sempre dizia isso, "estou criando vocês, mas não me façam passar em qualquer alfândega do mundo e perder toda bagagem. A gente não perdeu nada. Tá tudo aqui".


WV - Quais foram as lições que você tirou do jornalismo e trouxe pra carreira de atriz e pra literatura?
EL - A lição melhor foi a informação. Muita coisa que eu pensava ganhou fundamento. Eu nunca tinha estudado filosofia daquele modo. Compreendi uma coisa do Brasil: geografia... eu poderia ser uma excelente aluna de geografia! Eu nunca fui porque não tive professores que me explicassem que era geografia meu bairro, que era geografia minha praia, a chuva, que era meu bairro, que ficava dentro de um município, que ficava dentro de um estado, que ficava dentro de um país e eu ali dentro. A gente nunca estudou assim. A história, as convenções da vida da gente, eu não sabia que quando falava mal de história eu tava falando mal de mim.


WV - Você acha que isso também é uma deficiência do ensino?
EL - É uma deficiência do ensino, uma falta de visão do ensino brasileiro que vem sendo cada vez menos inteligente. Tem que ter disponibilidade pra ser criativo, sem medo de errar. Isso é que um ser inteligente, não é decorar um catálogo de telefone, inteligência é saber seis coisas, mas fazer dessas seis coisas tudo que sabe. A gente fica numa cultura de vestibular, não sabe nem pra que, aí você diz, fale sobre sua cidade. Aí vem aquela vergonha, não tem as palavras, o estudante sem repertório.


WV - Você já esteve em algumas produções da Globo, mas o teatro fala mais alto?
EL - Eu fico dois anos sem fazer televisão, mas não fico dois anos sem subir no palco. Não é que televisão seja menos, mas o palco é o lugar mais seguro. Meu espetáculo (Parem de Falar Mal da Rotina) tem censura pra 14 anos, mas não deveria ter nenhuma. É uma besteira. Só porque começo tomando banho pelada, deve ser por isso, mas não tem nada demais, é uma peça sobre o cotidiano. Mas não tem nada a ver de pornô. É uma idéia de uma pessoa estar em sua casa, em seu cotidiano e não há coisa mais cotidiano do que um bom banho. É uma pena porque esse espetáculo forma leitores. Por exemplo, em todo espetáculo meu, eu sorteio uma bolsa. Recito um poema e quem adivinhar o autor leva a bolsa (risos) e, a cada espetáculo, falo um poema novo.

WV- Você escreve sobre o cotidiano, a poesia do cotidiano, mas já se aventurou pela literatura infantil. De onde vem esse seu lado?
EL - Eu sou uma criança. Eu gosto da onda da criança, gosto de andar com gente que gosta de brincar de criança, de deixar a criança solta, é outro jeito de tocar a vida. E é muito chato ficar a vida sisuda o tempo inteiro, o dia inteiro. Tem gente que já acorda assim: "amanhã eu tenho prova. Ai, meu Deus, amanhã eu tenho prova". A prova é amanhã, mas vai apodrecendo as outras horas que não têm nada com isso, com a prova marcada de amanhã. E as outras horas que não têm nada com isso ficam sofrendo. Pra mim, escrever pra criança é me deixar em casa com meus coleguinhas.


WV - Há quem critique a poesia do cotidiano por considerá-la menos culta. Isso te incomoda?
EL - É mesmo, é? Não sabia, não. Repete a pergunta. A minha ou a de todo mundo? Quem foi o babaca que disse isso? (risos). Espero que não seja ninguém que está patrocinando a Feira (Risos). É uma bobagem isso. Não vou comentar.


WV - Você passou pelo jornalismo, teatro, literatura, já gravou CDs de poesia?
EL - Já gravei dois, falei que não ia comentar, mas vou comentar. Acho que a pessoa que acha que poesia do cotidiano é menos culta porque acha que poesia não deve ser entendida por todos, ela acha que poesia é um assunto que deve ficar elitista, na prateleira, para poucos. Quem fala que poesia do cotidiano é ruim, tá falando mal de Mario Quintana, Drumond, Adélia Prado, olha o time? E não preciso nem entrar na brincadeira. Acho gravíssimo dizer que é menos culto. O que é menos culto? Acho que uma boa cultura emocional, criativa, pode gerar pessoas muito mais cuidadosas.


WV - Você se vê fazendo uma das coisas, TV ou teatro, por exemplo, ou você acha que só estará feliz se puder explorar toda idéia que vier à mente?
EL- Eu já sei que não dá pra explorar todas, mas vou botando na fila as coisas que têm pra fazer e vou fazendo tudo ao mesmo tempo, tocando a vida. É tudo ao mesmo tempo, né? Tudo é ao mesmo tempo. Eu gosto de explorar minhas potencialidades. Vou fazendo tudo dentro do possível, da hora, porque a gente às vezes quer fazer uma coisa e não está na hora de fazer.


WV - A Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) organizou um festival de teatro amador. O que você acha do teatro amador?
EL - A palavra diz, é o teatro de quem ama. É no teatro amador que a gente aprende a fazer tudo. Foi lá que aprendi a passar batom. Me apresentava nos teatros do interior do Espírito Santo que hoje são ruins - abafa o caso - imagina 21 anos atrás? Mas aprendi a fazer a iluminação que tinha naquele teatrinho, figurino, cenário... então, isso que estava falando de estudar, de aprender, o ator entender a luz que o está iluminando. O teatro amador é o cerne do teatro profissional. Um bom ator de teatro dá um excelente ator de televisão, mas um bom ator de televisão no teatro parece que está morrendo afogado no palco, não sabe nem pisar, projetar a voz normalmente.


WV- O que é a poesia? Existe alguma fórmula?
EL - Não tem. A única coisa que poesia não tem é fórmula. Existe o dom, quanto mais a gente lê poesia, estuda poesia, a gente fica inspirado a escrever. Vai educando. Tenho um filho de 25 anos que foi educado com poesia, e o resultado é bom. Poesia refina. Poesia pra mim é uma forma de olhar o mundo, e quanto mais liberdade pra gente passear nos nossos bastidores, melhor pra poesia. Quando um ser humano lê um poema 'estou me sentindo um cocô de tristeza' (risos), então talvez, mesmo com essa palavra que não é tão bonita, mas pode estar começando um poema e tocar seu coração.