sábado, 27 de outubro de 2007

Pós-modernidade: o tempo acelerado e a imagem que se assume descartável antes da maturação


Em outubro de 1992, Madonna lançava uma cartilha definitiva da sexualidade pós-moderna: o disco "Erotica", o filme "Corpo em Evidência" e o livro-fantasia de conotações pornô "Sex" diziam ao mundo que os padrões da sociedade tradicional - que estabeleciam o papel da mulher como mãe, educadora e dona-de-casa, enquanto ao homem cabia o de pai, chefe de família, responsável pelo sustento da casa - já não existiam.

Como resultado do movimento feminista dos anos 60, saindo de uma era conservadora Madonna apareceu com suas roupas e atitudes, reformulando o papel revolucionário da mulher, ajudando a construir uma nova identidade a partir da moda, da sexualidade e da atitude diante de relações de poder. "Madonna brinca, de forma direta com os papéis sexuais, usa roupas masculinas, ocupa posições masculinas, propondo a quebra de estereótipos convencionais, como na turnê 'Blondie Ambition' em que seus bailarinos aparecem com seios e suas bailarinas, com pênis", explica a antropóloga Karlla Souza.

A cantora norte-americana nos apresenta um conjunto de contradições. Na elaboração de alguns clipes e na apresentação de algumas turnês, principalmente em 'Erotica', ela explora a imagem sexual e se apresenta como uma mulher dominadora, mostrando a liberdade feminina como algo natural e sadio, ironiza códigos sexuais e brinca com gestos obscenos. Em outras épocas passa a imagem da mulher romântica, passiva e sofredora. "Madonna choca quando surge de terno e segurando a virilha, realçando a artificialidade da imagem de poder do estereótipo masculino. Ao mesmo tempo, ela apresenta o papel das mulheres coisificadas, dessa feita enquanto instrumento sexual, avaliadas segundo a aparência, o glamour e a jovialidade", diz Karlla Souza.

Senhora ou profana, burguesa ou espiritualizada, Madonna invade os lares e as mentes do mundo inteiro através da cultura da mídia e do consumo. "Como resultado da sofisticação que os meios de comunicação de massa foram tomando, ela vem constituindo nos nossos dias a principal forma de socialização. Os produtos veiculados pela mídia não podem ser considerados apenas como entretenimento inocente, mas, por terem um cunho socializador e por situarem-se num terreno de lutas e representações dos atores sociais. O estudo da cultura da mídia permite, então, que se amplie, para além da crítica ideológica, a crítica para questões da identidade e da sexualidade e consumo" avalia Karlla.

O resumo da história é que hoje as mulheres passaram de donas-de-casa a donas de si. Mas, baseado na noção de pós-modernidade, a identidade das mulheres aderiu à bricolagem de elementos. A idéia predominante do indivíduo é formar imagens agradáveis de si mesmo. "Num verdadeiro processo de experimentação, tais imagens nunca existem em definitivo, mas estão em constante reformulação, em reaproveitamentos ou combinações de elementos diversos", conta a antropóloga.

A bricolagem é um fenômeno presente nas artes, na música, na informação. "O que vemos despontar no cenário regional e nacional através das bandas de forró elétrico por exemplo, utilizando letras românticas e danças sensuais pode ser um exemplo do que acabamos de definir como sendo uma bricolagem. Misturando elementos das canções e das performances de Madonna, associando isso ao ritmo quente e fogoso do forró, o estilo vem ganhando espaço através da indústria midiática e do comércio de símbolos sexuais. As mulheres exibindo seus corpos seminus chegam a lembrar Madonna feliz e dançante do início de sua carreira, porém, recuperando o arquétipo da mulher-objeto, e não daquela que aposta no futuro e na sua vontade de se expressar", define Karlla Souza.

Portanto, entendo que a imagem da mulher pós-moderna no palco vale para todas que, aliás, provavelmente, sequer sabem por que posam tão sensuais para capas de discos, ou porque rebolam para além do som. "A maldição da mídia é que ela tem que acompanhar a aceleração da pós-modernidade. Seus produtos não têm um tempo necessário de maturação. Tudo acaba sendo impiedosamente atropelado, e nesse frenesi sobram alguns restos e muitas reaproveitações. As coisas não evoluem, elas se complicam, e antes mesmo que se resolvam, são simplificadas em um número infinito de releituras e reapropriações grosseiras, de figurinos, imagens e som. O imperativo do comércio midiático tornou a novidade obsoleta e, antes mesmo que Madonna pudesse se tornar antiga, outras novidades tiveram de ser lançadas", explica Karlla Souza.

Por isso, o que parece ser é que a mulher decidida já não serve, a super-fêmea também já está fora de moda. "Erótica", por um lado, é uma obra musicalmente excelente, reveladora e pontua a virada de conceitos e liberdades, ou libertinagens. Por outro, 15 anos depois do estardalhaço, a efemeridade do nosso tempo levou a imagem ou a mulher a se adequar aos desígnios do novo mercado: é preciso assumir-se descartável para sobreviver.


"Erotica" e a quebra de tabus

O grande mérito do álbum "Erotica" - lançado em outubro de 1992 - foi ter dado um duro golpe na ignorância e hipocrisia predominantes na sociedade, ao promover a liberdade sexual numa época marcada pelo medo do "monstro" da AIDS. O perturbador e controverso álbum, no entanto, não se resume apenas a sexo, mas também apresenta algumas canções que falam sobre desentendimentos, incertezas, traições, tolerância e amor. Dentre os singles do disco, além da faixa-título, estão as canções "Fever", "Bad Girl", "Rain", "Deeper and Deeper" e "Bye Bye Baby". O álbum vendeu aproximadamente 7 milhões de cópias em todo o mundo e figura entre os melhores da carreira de Madonna.

3 comentários:

Freddy Simões disse...

Prezado Williams,

Congratulações pela excelente matéria, tão aguardada! Você conseguiu captar a essência do trabalho do Madonna e sua importância enquanto mulher libertária, que promove uma revolução no pensamento feminino, a partir do momento em que destrói o arquétipo da mulher retrógrada, passiva, desprovida de escolhas e com vergonha de explorar a própria sexualidade.

No entanto, particularmente, eu sempre enxerguei Madonna como uma inteligentíssima mulher de negócios que sabe tomar as decisões mais acertadas no tocante à sua carreira. Isso você mesmo pode constatar: praticamente todas as vezes em que Madonna figurou nos tablóides foi por causa de alguma polêmica advinda de sua carreira (um beijo lésbico, uma declaração bombástica, um show, uma música) e nunca relacionado diretamente ao campo pessoal, no qual ela exerce o papel de mãe, dona-de-casa, estudiosa da cabala, escritora de historinhas infantis, militante em causas sociais e, até onde eu sei, ela não consome drogas.

Dessa forma, é possível enxergar Madonna como uma grande "empreendedora" da música; aquela que faz o possível e o impossível para ser sempre interessante, produzir sempre algo relevante no intuito de ter um diferencial enorme em relação às suas concorrentes! E na maioria das vezes ela consegue esse feito!

O mesmo não acontece com a pobre Britney Spears, que tem figurado nos tablóides com a imagem de maldita, viciada, descontrolada, fora de forma, irresponsável que perdeu a guarda dos dois filhos e não consegue reconhecimento na mídia por um bom trabalho realizado, e sim pela sua sarjeta moral.

A propósito, eu me senti no direito de colocar - a título de elucidação - um breve complemento mais específico sobre o disco. Caso tenha qualquer discordância, com o escrito, manifeste-se!

Abração!

Anônimo disse...

As cantoras de forró estilizado lembram Madonna? Só se for no visual, porque o conteúdo é ZERO! Ao contrário delas, Madonna sempre tem algo a dizer e mesmo aos quase 50 anos de idade, ainda tem o sex-appeal infinitamente maior que o dessas cantorazinhas! Por isso´que ela é MADONNA! Vi a reportagem sobre Michael também! É uma pena ele não ter mantido eo equilíbrio como Madonna. Ele é musicalmente muito superior a ela, mas é uma pena que suas loucuras tenham acabado com a carreira dele. Duvido muito que ele tenha força´pra voltar. Nos proximos anos, novidades acho que só de Madonna mesmo.

Parabéns pelo blog! Sempre tem algo interessante pra se ler aqui. Divulguem mais! Ele precisa ser lido por muito mais gente!!!!

Unknown disse...

O complemento sobre o album esta otimo. eu nao quis me prender muito a analisar o disco pq o jornal é local e procurei trazer o conceito de cima, de onde vem, para a realidade de onde escrevo. Não se trata de fazer comparações, madonna nao está para ser comparada, mas o fato é que, se de um lado ela trouxe a liberdade para as mulheres, especialmente no tocante a sexualidade, por outro, o tempo, o nosso tempo, aproveitou-se dessa abaertura para mercantilizar e trasformar tudo que é arte em descartavel. Portanto, a questao nao é maniqueista, se madonna é boa ou má, e sim que é uma realidade que as bandas de forro, ou de axé, sao o que sao, no palco especialmente, por conta dessa abertura. Embora pareca ser uma desgraça, talvez nao houvesse o forro e o axé semi-nus se nao fosse por Erotica. Enfim, nao é uma comparação de sons, mas uma análise da imagem pos-moderna.