segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Entrevista: Elisa Lucinda


Elisa Lucinda nasceu em Vitória, no Espírito Santo, em 1958, onde se formou em jornalismo e chegou a exercer a profissão. Em 1986, mudou-se para o Rio disposta a seguir a carreira de atriz. Publicou, entre outros, os livros A Menina Transparente, "Euteamo" e suas estréias, O Semelhante e a Coleção Amigo Oculto (trilogia infantil) e gravou os CDs de poesias. Elisa foi a estrela da abertura da III Feira do Livro de Mossoró, onde concedeu esta entrevista. Ela fala do amor ao trabalho, à poesia do cotidiano e à arte de fazer seguir o dom para viver melhor.

Williams Vicente - Você acha que deve haver mais debates sobre literatura?
Elisa Lucinda - As crianças vão à escola e saem sem saber que livro é arte, que o escritor é um artista, sem saber que quando elas amam Harry Potter, Branca de Neve e Dom Quixote no cinema, tudo isso foi livro. A novela que ele adorou foi um roteiro, alguém escreveu. Então ninguém ensina a nossa língua com paixão, como arte, a gente não ensina que o escritor é um artista. Ninguém diz 'leia esse livro, olha que livro maravilhoso', igual um disco que bota uma música pra tocar e você diz, 'aí, empresta?'"


WV- Seria falta de incentivo?
EL - É falta de incentivo e de educação, de clareza, de visão da educação. A educação é muito cheia de conteúdo e sem emoção. O que está mais me incomodando no Brasil é como se fala mal a nossa língua. Estão concordando errado: a maioria 'fizeram'. Que maioria fizeram? E aí periga perder essa língua e suas possibilidades criativas. Não vai acontecer isso porque tem sempre um movimento de renovação natural para sobrevivência da língua, mas eu fico assustada. Acho que tem que saber português para formar novos leitores e autores.


WV - Você se formou em jornalismo, mas o que te levou a procurar a carreira de atriz?
EL - Eu já estudava poesia, declamação desde os onze anos e cresci querendo ser atriz. Fui ser jornalista porque meu pai disse "faz comunicação e fica aqui, você não vai ter que deixar nossa cidade-natal, não vai ter que sair de perto de nós, você é tão comunicativa", e me convenceu que gosto de palavras, ótimos argumentos. Nunca me arrependi de ter feito jornalismo, acho chiquérrimo.


WV - Nunca sentiu falta de exercer o jornalismo?
EL - Sinto falta de escrever uma coluna em jornal.


WV- Já teve?
EL - Já, depois parei, mas eu tô caminhando pra isso, pra fazer parte das ações do meu cinqüentenário, ano que vem. Eu não tenho vontade de parar de escrever. Escrever para mim não é nenhum sacrifício. Atenção jovens que vão me ler, acho que a coisa mais certa, mais inteligente que o ser humano tem a fazer no mundo é identificar os seus dons... o meu dinheiro, meu batom, o frango, o peixe que como, esse pão vem do meu trabalho que escolhi, que eu gosto de fazer. Meus empregos não são decididos por quem dá mais. Eu vou por onde mais me interesso e mais amo. O cara que não gosta de escrever dá três horas de trabalho tá louco pra ir embora. É muito ruim trabalhar no que não se gosta...sai muita gente prejudicada. Há policiais que deviam ser enfermeiros e há enfermeiros que deviam ser policiais (risos), de
tão grosseiros... é um segredo você andar em cima do seu dom. Não tem esse negócio de "ah! Odontologia dá mais!". Então, você pode ser um excelente cozinheiro, não tem esse negócio de que comida não dá dinheiro! Se você for o melhor, o melhor de você, não tem jeito. Eu sempre falo, se meu chefe quiser um outro profissional igual a mim, vai ter que ficar comigo. Pode até encontrar melhor, mas igual a mim não. Meu namorado também, mulher igual a mim não tem, igual? Não tem, tem outras, todo mundo é um, e nesse sentido ninguém tem concorrente.


WV - De onde veio essa vontade, essa garra de querer ser única e mostrar isso pro povo?
EL - Aprendi isso em casa. Minha mãe sempre foi muito bacana, alegre, inteligente. Meu pai sempre dizia isso, "estou criando vocês, mas não me façam passar em qualquer alfândega do mundo e perder toda bagagem. A gente não perdeu nada. Tá tudo aqui".


WV - Quais foram as lições que você tirou do jornalismo e trouxe pra carreira de atriz e pra literatura?
EL - A lição melhor foi a informação. Muita coisa que eu pensava ganhou fundamento. Eu nunca tinha estudado filosofia daquele modo. Compreendi uma coisa do Brasil: geografia... eu poderia ser uma excelente aluna de geografia! Eu nunca fui porque não tive professores que me explicassem que era geografia meu bairro, que era geografia minha praia, a chuva, que era meu bairro, que ficava dentro de um município, que ficava dentro de um estado, que ficava dentro de um país e eu ali dentro. A gente nunca estudou assim. A história, as convenções da vida da gente, eu não sabia que quando falava mal de história eu tava falando mal de mim.


WV - Você acha que isso também é uma deficiência do ensino?
EL - É uma deficiência do ensino, uma falta de visão do ensino brasileiro que vem sendo cada vez menos inteligente. Tem que ter disponibilidade pra ser criativo, sem medo de errar. Isso é que um ser inteligente, não é decorar um catálogo de telefone, inteligência é saber seis coisas, mas fazer dessas seis coisas tudo que sabe. A gente fica numa cultura de vestibular, não sabe nem pra que, aí você diz, fale sobre sua cidade. Aí vem aquela vergonha, não tem as palavras, o estudante sem repertório.


WV - Você já esteve em algumas produções da Globo, mas o teatro fala mais alto?
EL - Eu fico dois anos sem fazer televisão, mas não fico dois anos sem subir no palco. Não é que televisão seja menos, mas o palco é o lugar mais seguro. Meu espetáculo (Parem de Falar Mal da Rotina) tem censura pra 14 anos, mas não deveria ter nenhuma. É uma besteira. Só porque começo tomando banho pelada, deve ser por isso, mas não tem nada demais, é uma peça sobre o cotidiano. Mas não tem nada a ver de pornô. É uma idéia de uma pessoa estar em sua casa, em seu cotidiano e não há coisa mais cotidiano do que um bom banho. É uma pena porque esse espetáculo forma leitores. Por exemplo, em todo espetáculo meu, eu sorteio uma bolsa. Recito um poema e quem adivinhar o autor leva a bolsa (risos) e, a cada espetáculo, falo um poema novo.

WV- Você escreve sobre o cotidiano, a poesia do cotidiano, mas já se aventurou pela literatura infantil. De onde vem esse seu lado?
EL - Eu sou uma criança. Eu gosto da onda da criança, gosto de andar com gente que gosta de brincar de criança, de deixar a criança solta, é outro jeito de tocar a vida. E é muito chato ficar a vida sisuda o tempo inteiro, o dia inteiro. Tem gente que já acorda assim: "amanhã eu tenho prova. Ai, meu Deus, amanhã eu tenho prova". A prova é amanhã, mas vai apodrecendo as outras horas que não têm nada com isso, com a prova marcada de amanhã. E as outras horas que não têm nada com isso ficam sofrendo. Pra mim, escrever pra criança é me deixar em casa com meus coleguinhas.


WV - Há quem critique a poesia do cotidiano por considerá-la menos culta. Isso te incomoda?
EL - É mesmo, é? Não sabia, não. Repete a pergunta. A minha ou a de todo mundo? Quem foi o babaca que disse isso? (risos). Espero que não seja ninguém que está patrocinando a Feira (Risos). É uma bobagem isso. Não vou comentar.


WV - Você passou pelo jornalismo, teatro, literatura, já gravou CDs de poesia?
EL - Já gravei dois, falei que não ia comentar, mas vou comentar. Acho que a pessoa que acha que poesia do cotidiano é menos culta porque acha que poesia não deve ser entendida por todos, ela acha que poesia é um assunto que deve ficar elitista, na prateleira, para poucos. Quem fala que poesia do cotidiano é ruim, tá falando mal de Mario Quintana, Drumond, Adélia Prado, olha o time? E não preciso nem entrar na brincadeira. Acho gravíssimo dizer que é menos culto. O que é menos culto? Acho que uma boa cultura emocional, criativa, pode gerar pessoas muito mais cuidadosas.


WV - Você se vê fazendo uma das coisas, TV ou teatro, por exemplo, ou você acha que só estará feliz se puder explorar toda idéia que vier à mente?
EL- Eu já sei que não dá pra explorar todas, mas vou botando na fila as coisas que têm pra fazer e vou fazendo tudo ao mesmo tempo, tocando a vida. É tudo ao mesmo tempo, né? Tudo é ao mesmo tempo. Eu gosto de explorar minhas potencialidades. Vou fazendo tudo dentro do possível, da hora, porque a gente às vezes quer fazer uma coisa e não está na hora de fazer.


WV - A Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) organizou um festival de teatro amador. O que você acha do teatro amador?
EL - A palavra diz, é o teatro de quem ama. É no teatro amador que a gente aprende a fazer tudo. Foi lá que aprendi a passar batom. Me apresentava nos teatros do interior do Espírito Santo que hoje são ruins - abafa o caso - imagina 21 anos atrás? Mas aprendi a fazer a iluminação que tinha naquele teatrinho, figurino, cenário... então, isso que estava falando de estudar, de aprender, o ator entender a luz que o está iluminando. O teatro amador é o cerne do teatro profissional. Um bom ator de teatro dá um excelente ator de televisão, mas um bom ator de televisão no teatro parece que está morrendo afogado no palco, não sabe nem pisar, projetar a voz normalmente.


WV- O que é a poesia? Existe alguma fórmula?
EL - Não tem. A única coisa que poesia não tem é fórmula. Existe o dom, quanto mais a gente lê poesia, estuda poesia, a gente fica inspirado a escrever. Vai educando. Tenho um filho de 25 anos que foi educado com poesia, e o resultado é bom. Poesia refina. Poesia pra mim é uma forma de olhar o mundo, e quanto mais liberdade pra gente passear nos nossos bastidores, melhor pra poesia. Quando um ser humano lê um poema 'estou me sentindo um cocô de tristeza' (risos), então talvez, mesmo com essa palavra que não é tão bonita, mas pode estar começando um poema e tocar seu coração.

Um comentário:

Freddy Simões disse...

Foi uma grata surpresa esta entrevista com Elisa Lucinda, uma das personalidades mais interessantes, inteligentes e talentosas que já vi - ótima atriz, boa cantora e excelente escritora. Adoro a verve crítica e sensata que ela possui. Suas opiniões são sempre pertinentes e com uma dosagem de bom humor. Há vários poemas dela dos quais eu gosto muito, dentre eles: "Um bonde chamado seu beijo", "Da chegada do amor" e "Para um amor na rua". Outro texto bastante interessante dela é "Só de sacanagem", uma tapa na cara da corrupção em 'metástase' no Brasil, e que se tornou bastante conhecido devido ao fato de ter sido recitado por Ana Carolina no DVD com Seu Jorge.

Essa matéria foi um grande acerto!

Obrigado pelo prazer literário que me proporcionou! Serviu para apaziguar o estado de inquietude e desânimo em que me encontro há dias!