quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

O peru de Natal

Mário de Andrade


O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.


Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.


Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":


— Bom, no Natal, quero comer peru.


Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.


— Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...


— Meu filho, não fale assim...


— Pois falo, pronto!


E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.


Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.


Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:


— É louco mesmo!...


Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.


— Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!


Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.


— Eu que sirvo!


"É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:


— Se lembre de seus manos, Juca!


Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.


— Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!


Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.


Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.


Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.


— Só falta seu pai...


Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:


— É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.


E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.


Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.


Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.


Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

O texto acima foi extraído do livro "Nós e o Natal", Artes Gráficas Gomes de Souza, Rio de Janeiro, 1964, pág. 23


Mário de Andrade (1893-1945), nasceu em São Paulo, mostrando desde cedo inclinação pela música e literatura. Seu interesse pelas artes levou-o a realizar em São Paulo, de parceria com Oswald de Andrade, a Semana de Arte Moderna, que rasgou novas perspectivas para a cultura brasileira. Sua obra, essencialmente brasileira, reflete um nacionalismo humanista, que nada tem de místico e abstrato. "Macunaíma", baseada em temas folclóricos é, geralmente, considerada a sua obra-prima.

sábado, 1 de dezembro de 2007

No baticum da música eletrônica


A nomenclatura música eletrônica se refere a tudo que é utilizado binariamente para produzir música. Poucos se dão conta de que, quando falamos em música eletrônica, referimo-nos ao revestimento que a tecnologia permitiu à produção moderna. Quem conhece Céu, Cibelle, Bebel Giberto, Roberta Sá, Marina Lima ou Kátia B sabe que por trás do samba existe uma atmosfera concretizada a partir dos recursos da E-music. Já no baticum da música eletrônica dançante talvez haja mais com o que se preocupar do que botar o esqueleto para mexer. Dançante restringe o termo ao som que leva à dança em festas, mais precisamente, neste caso, às raves e movimentos correlatos: cena que pode ser subdividida em incontáveis gêneros. Da era disco ao final dos anos 1980, quando a música eletrônica dançante ganhou força com a invenção das raves, na Inglaterra, a mídia rejeitou o produto, depois o tombou para gerar o lucro e hoje volta condenar um modo de vida que, no princípio, propunha-se a reunir pessoas que pensavam em promover a elevação do espírito através da música, assim como se fazia nas décadas de 1960 e 1970 sob a ideologia do "paz e amor".


No entanto, há uma inversão de valores erguida pela burguesia alienada de hoje: a rave, que era reflexo da contestação e ambiente para o ouvinte entrar em estado de transe, utilizando como base a transformação do estado do corpo através de batidas seqüenciais, transformou-se em caso de polícia e saúde pública. Obviamente, o estado de transe dos anos 70, ou de hoje, sempre está associado ao uso de elementos adicionais à música, como drogas. E antes que a hipocrisia ataque, a diferença parece estar na consciência do usuário. A década de 70 não vivi e, portanto, não sei que nível de responsabilidade havia pelos usuários de aditivos. Nos anos 00, a música eletrônica dançante deixou de ser um ideal de revolução para se tornar tripé da experiência irresponsável do ouvinte, e a música deixou de ser o aspecto principal. Por quê?


Freqüentar a cena eletrônica deveria ser, em essência, tirar proveito da cultura underground que, por natureza, valoriza a qualidade em detrimento do apelo comercial. Mas, enquanto produto, empresas multinacionais passaram a apoiar raves que tem nas pick-ups Dj's estrelas do underground: paradoxo que virou moda e, como moda pós-moderna, criou um estilo de vida onde o que vale é desfrutar do prestígio.


O prestígio descabido levou a polícia do Rio de Janeiro, por exemplo, a prender nove pessoas no início de novembro, todos de classe média, que traficavam ecstasy para freqüentadores de raves. O ecstasy é a pílula mágica da vida para quem anda pela cena. É uma droga de forte apelo e efeito sedutor entre jovens e adolescentes porque dá pique e "elevação de espírito" nas festas que podem durar mais de um dia. Mas o ecstasy é uma droga sintética que pode causar danos aos usuários a longo prazo, como neurodegeneração e perdas de memória, além de desencadear transtornos psíquicos como a depressão e a síndrome do pânico. Causa também alteração dos sentidos - principalmente tato e audição - e pode ser fatal. O consumo da droga, mesmo que seja em pequena quantidade ou eventualmente, causa aceleração dos batimentos cardíacos, superaquecimento corporal e também um desequilíbrio na concentração de sais minerais do organismo. Comercializada em forma de comprimido, cápsula ou pó, a bala (como é chamada a pílula) faz o jovem exceder os limites e "fritar", ou ficar "muito louco", traduzindo a gíria. E o ecstasy é caro. Uma balinha não sai por menos de R$ 50,00. Talvez isso explique a predileção da classe média pela droga.


Por outro lado, drogas ilícitas em geral nunca estiveram tão baratas. Estudo do Centro Europeu de Monitoramento de Drogas (EMCDDA) mostra que, em cinco anos, a heroína sofreu redução de 45% e a cocaína, de 22%. Já a maconha, em Portugal, é vendida a 2,3 euros o grama e a 12 euros na Noruega.


Em Mossoró-RN, a cinquentinha da maconha, como é conhecida a barra de 50g, está entre 70 e 150 reais. Apesar do valor, ainda é a droga mais popular e pano de fundo para constatar, obviamente, a ausência de um movimento da música eletrônica na cidade. Este ano, a Delegacia de Narcóticos apreendeu 5.190 pedras de crack e pouco mais de 3Kg de maconha na cidade até meados de novembro. No mesmo período, a Polícia Federal apreendeu pouco mais de 56Kg de maconha e por volta de 6Kg de cocaína. Portanto, o ecstasy não passou pelas mãos da polícia em Mossoró. A idéia não é condenar a cena eletrônica, que mal existe. Aliás, quanto mais música, melhor. Para além de associar a música eletrônica à droga, fujo da repressão e do sensacionalismo da mídia e, assim, desejo que a cena vingue de forma consciente, porque a chegada será inevitável. Antes é preciso que se deixe de circular pelos bastidores das festas - quando raramente acontecem - os burburinhos de que o movimento é GLS. E, se vingar, a classe média (ou seja lá quem venham a ser os freqüentadores) deve reparar que, antes do abuso no uso das drogas, há música de qualidade e artistas interessados no respeito.